Além de conhecimento da vida, das regras da gramática, e alguma capacidade de dar à mentira um cheiro de verdade, escrever ficção é arte ao alcance de muitos. Outro galo canta se se trata de relatar um caso, não somente acontecido, mas que por razões várias nos tocou de perto, envolveu gente que conhecemos e deixa um peso na consciência, como se duma maneira ou doutra tivéssemos podido evitar o que aconteceu
A história é real,
trágica, talvez por isso embaraça o resumi-la numas poucas linhas, como se
assim se lhe diminuisse a compaixão que merece.
Casou ainda rapaz, deixou a mulher na aldeia e emigrou para a Alemanha. Dezenas
de anos viveu lá em solidão. À custa de privações e sacrifícios, trabalhando de
dia na fábrica e à noite de porteiro num prédio, conseguiu poupar uma pequena
fortuna, garantia de um futuro de vida folgada, paz de espírito e descanso do
corpo.
Quando vinha de férias invejavam-no, mas também o admiravam, pois nenhum deles
tinha um Mercedes assim, nem conseguira construir casa tão grande.
Boa companheira, a mulher trazia tudo num brinco, e por ter instrução era ela
quem tratava com o banco e se encarregava da papelada.
Chegou o dia do regresso definitivo. Partiu da Alemanha com a euforia de ter
alcançado o que queria, mas sem saudades, porque não tinha feito amigos, nem
ninguém sente pena de deixar o degredo.
Na aldeia receberam-no com festa. No dia seguinte, contente como uma criança,
perguntou à mulher quanto dinheiro tinham, e ela, desvairada, confessou ter
perdido tudo no jogo. Nem a casa lhes pertencia, porque a tinha hipotecado.
Cego de raiva, matou-a. No julgamento ouviu que lhe dera mais de cinquenta
golpes com uma tesoura, mas de nada se recordava porque, como em lágrimas disse
ao juiz que o condenou a vinte anos de prisão, nessa altura também já tinha
morrido.