Para Javier Huerta Calvo
Meu caro Javier,
Escrevo-te de Tordesillas, onde me encontro por razões independentes da minha vontade ou de qualquer simpatia pelo local. Ao passar por aqui vindo de Amsterdam, tinha eu intenção de, em vez de continuar para Portugal, enfiar pela estrada de Madrid e ir fazer-te uma visita. O destino, porém, dispôs doutro modo. No momento em que me encontrava a meter gasolina e a pesar as implicações da minha decisão, fui acometido por um acesso tão repentino e violento de febre que o homem da bomba, dando conta do meu estado, se ofereceu para chamar um médico. Temeroso de me ver sujeito à costumeira dose de antibióticos e esperançado na cura que vem do tempo e do descanso, fui dali para o hotel Los Toreros, onde me encontro desde quarta-feira.
Tudo isso teria sido apenas um ligeiro contratempo, não se tivesse dado o caso de um ancião, empregado do hotel, ter descoberto que a minha presença lhe oferecia a oportunidade de um ajuste de contas histórico.
O hotel Los Toreros, estabelecimento moderno com bar, café, restaurante, pátio sombreado, música permanente e ar condicionado, é o ponto de encontro do jet set de Tordesilhas. É também o local de aparatosas bodas nupciais. Foi assim que, quando no segundo dia me arrisquei a descer à sala de jantar, a encontrei apinhada com uma companhia que festejava um casamento. O empregado em questão informou-sedas minhas melhoras e sentou-me a um canto onde me serviu uma refeição de doente. Depois, olhando satisfeito a sala, afirmou que em parte nenhuma de Espanha se sabia festejar uma boda tão bem como em Tordesilhas. E então em Portugal, onde anos atrás passara duas semanas e nunca mais queria voltar, até se ignorava o que fosse um jantar decente. Comida portuguesa? Pfff...
O seu sopro manifestava um desdém tão convicto que eu, abalado pela febre e vendo-me ali rodeado de «inimigos», não tive coragem ou força para retorquir.
Durante o almoço do dia seguinte começou ele com a comparação entre a esplendorosa limusina em que o rei Juan Carlos se desloca às solenidades – tão especial que só o Papa tem uma semelhante, mas menos luxuosa – e o carro que transporta o presidente Soares quando em Lisboa há qualquer festejo.
Como a afirmação me não parecesse insultuosa e também porque pouco percebo de limusinas, limitei-me a um aceno de cabeça. Quis ele então saber se era do meu conhecimento que no século XV, em Tordesilhas, Fernando e Isabel de Castela tinham obrigado o rei de Portugal a parar os Descobrimentos.
Com o gosto de finalmente marcar um ponto restabeleci a verdade dos factos, mas para que a minha vitória lhe não parecesse tocada de arrogância, mudei de assunto e pedi-lhe para me trazer uma tigela com água quente e limão para desengordurar os dedos.
É curioso constatar como a auto-satisfação realmente faz empertigar as pessoas.
- Limão! Água quente! Ainda se usa isso em Portugal?
- Até na Holanda – arrisquei eu.
Não acreditou. Em Portugal, dado o nosso atraso, era provável. Mas na Holanda, país civilizado que ele conhecia da televisão, não era possível. Na Holanda, caballero, como na Espanha, lavavam-se as mãos à mesa com uma toalhinha perfumada. Tirando uma de uma caixa, abrindo-a para que eu visse como se fazia, praticamente me esfregou as mãos com ela. Foi assim que vivi a experiência única de comer codornizes cheirando a Maja e fiz a descoberta de como é repulsivo o Rioja acompanhado de água-de-colónia.
Provavelmente passo aqui mais um dia, e a visita a Madrid fica para outra altura, mas creio que esta foi a primeira e última vez que pus os pés em Los Toreros de Tordesilhas.
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In Mazagran – Quetzal, 2012
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