"O sonho de Carlos Munim tinha começado na infância, era o escudo com que se defendia do sentimento indefinido de aversão e medo em que misturava as pessoas, as casas, os animais, a rudeza da paisagem.
Ignorava se outras terras geram em quem nelas nasce um ódio assim, mas já de pequeno se sentira ali infeliz, asfixiado, para ele era caso assente: um dia fugiria para não voltar.
Fora idealizando e, já adulto, ora se via numa quinta do Minho, ora no Brasil ou na Argentina, um latifúndio com rebanhos e cavalos, searas, pessoal às ordens, avião na pista.
No princípio, cada êxito parecia tornar próxima a materialização do sonho, como cada falhanço avivava o pesadelo que seria não conseguir realizá-lo.
Felizmente, nos últimos anos, o que tinha sido obsessão tomara proporções realistas, e na primeira vez que visitara a propriedade do conde sentiu o baque de quem acerta no alvo.
O jardim, a piscina, a casa e o terraço, os vinhedos, a paisagem, o conforto que ali se adivinhava, o ar sereno que a riqueza empresta às pessoas e às pedras, aquilo como que lhe cortou a respiração.
Era assim o que desejava possuir, era aquele o ambiente de plenitude que queria alcançar. E ao longo do tempo, irresistível, apoderara-se dele um sentimento mórbido de inveja, a irracionalidade que faz descarrilar.
Uma tarde que não parava de dar sugestões, de propor mudanças nisto e naquilo, Jorge, ríspido, tinha-lhe dito:
- Ó Munim, se alguém te ouvisse e não soubesse, ia pensar que isto era teu. Mas não é. Nem está à venda.
Sorriu e teve um encolher os ombros, a mostrar que era modo de dizer, não merecia a censura. Mas tomou nota. O reparo tinha-o ferido. Era como se Jorge desvendasse o segredo da sua ambição, ganhando o poder de o ridicularizar. Desde aí, se um comentário lhe fugia, emendava logo, compondo o deslize.
No momento em que soube da chantagem, foi como se tudo à sua volta explodisse, em segundos repassou o filme inteiro do que sonhava que acontecesse. Não fazia ideia da fortuna de Jorge, mas imaginava-o já envolvido em processos complicados e ruinosos, escândalos, os prejuízos a amontoar-se, a quinta à venda.
Via-se sentado no terraço, estalando os dedos a chamar o pessoal. Com ele iam saber quem era o patrão, dava àquilo uma reviravolta. A inglesa, a olhá-lo de alto, e nunca sequer lhe tinha apertado a mão, seria a primeira a levar um pontapé no cu. O Samuel outro. Esse ia aprender que quando se fala ao doutor Carlos Munim, ao senhor doutor Carlos Munim, não se põe aquela cara de quem goza e falta ao respeito.
Sobressaltou-se ao ver que se enfurecia, aos berros, apontando um dedo acusador como se tivesse o Samuel à frente:
- Já não estamos no 25 de Abril! Rua!
A cabeça de Carolina apareceu na frincha da porta:
- O senhor doutor chamou?
Não fez caso, nem a encarou, e ela, adivinhando-lhe o mau humor, fechou a porta devagarinho, segurando o trinque para não fazer barulho."
……
in Mentiras & Diamantes – Quetzal, 2013.