sexta-feira, agosto 7

Um reincarnado

 Sábado, 7 de Agosto - Conheço-o desde que nasceu, vi-o fazer-se homem e, como o resto da aldeia, mesmo os da sua família, aprendi que mais seguro era nunca o contrariar nem contradizer, sorrir-lhe e passar de largo.

De pais magricelas saiu ele grande e forte. O temperamento de zaragateiro tresloucado deve ser herança de um avô que, de pura raiva, por ter perdido no tribunal uma questão de partilhas, se enforcou numa trave da adega.

Fez a tropa e depois, por milagre ou distracção de quem o alistou, conseguiu entrar para a Polícia. Aguentaram-no pouco tempo, porque aquilo não era violência, eram instintos de fera: multado que se queixasse, burguês que desobedecesse ao seu mando, transgressor refilão, e era à bofetada, a pontapé, iam dali para o hospital, ou levava-os ele aos empurrões para esquadra, para mais um “tratamento.”

Esteve preso, por fim expulsaram-no, e emigrou para a Alemanha, onde arranjou emprego num matadouro. Desde então devem ter passado mais de vinte anos sem nos vermos, e hoje não o reconheci no homem sereno e cordial que me veio abraçar.

     Perguntei se ainda trabalhava no matadouro, e ele sorriu: -Aguentei pouco  

     tempo.

Contou depois que tinha estudado à noite e acabara por se estabelecer, abrira já três lojas. Se eu um dia for a Hamburgo, gostaria de mas mostrar.

     E, como se adivinhasse a pergunta que eu não ousava fazer:

- Passei maus bocados. No trabalho, com um capataz que embirrava comigo. Outras vezes na rua... Mas eu acho que era assim por causa da raiva, e por ter medo. Medo da fome, da miséria... Às vezes até rezava. E parece que foi milagre, porque desde que comecei a ficar bem na vida nunca mais…

Encara-me, mas perdido nos seus pensamentos não termina a frase, só depois de uma longa pausa diz:

- Não foi só o mudar. Há alturas em que quase tenho a certeza de que sou outra pessoa. Que reincarnei.

in Pó, Cinza e Recordações - Quetzal, 2015