"Carlos
Munim não é de saudades ou recordações. Em conversa, mesmo se a frase não tem
cabimento, gosta de repetir:«Prà frente é que é o caminho», dando ideia de que
aquilo se lhe tornou mantra ou exorcismo. De facto, pudesse ele, de bom grado
faria uma lavagem ao cérebro, safando o tempo, desde a infância ao dia em que
alugara o escritoriozito no Porto e, finalmente, se sentira nascer para o mundo.
Pouca mossa lhe fazem os desaires, os reveses, a cadeia, os vexames, parte que
são do caminho da vida, e esse, sabe-o bem, só de longe a longe é de rosas. O
passado, contudo, impiedoso no assalto, escolhe as horas em que o sente
indefeso, as noites em branco, os momentos de derrota, e tortura-o com a visão detalhada
do que não consegue esquecer. O ódio pela terra em que nasceu tem a marca da
psicose aguda. Não saberia explicar em que hora e por que motivo cresceu nele
aquela desmedida aversão pelo lugar e pela gente, pelas arribas, os montes, a
secura, os pedregulhos, o isolamento, o rio, tão lá no fundo que raro o tinha
avistado. Garoto de nove ou dez, o pai a sair do palheiro no passo lento das
pernas cambadas, o cajado a servir de bengala.- Que estás aí a fazer, ó morcão?
A pergunta não pedia resposta, era só insulto, ameaça, aviso para guardar o
longe, que chegando-lhe ao alcance era bofetada certa, ou pontapé como os que
dava ao cão para lhe sair da frente.
- Ó palerma,
vai buscar a calagouça.
Se lha
entregava segurando a lâmina, vinha o berro: - Sabes como se agarra uma
calagouça, ó merdas? Pegava-a pelo cabo, julgando fazer direito, sofria o
tabefe e evitava olhar, temeroso dos puxões com que quase lhe arrancava as
orelhas. Passados os dezasseis, já forte, e o velho mirrado pela doença,
acabara-se a pancadaria, os insultos tinham baixado de tom, mas nem por isso
lhes faltava sarcasmo - «Não vales o que comes» - e se apanhava a mãe a passar-lhe uns trocos,
vingava-se nela, dobrando as bofetadas."
in "Mentiras & Diamantes" – Quetzal, 2013