domingo, julho 26

Os filmes da madrugada


Desde o suicídio da Amélia as horas piores são as da madrugada. É como se tivesse dentro de si um despertador que o acorda por volta das três, e quase sempre logo de seguida começa a desenrolar-se um filme de situações confusas, onde umas vezes é personagem, noutras se torna um estranho a si mesmo, noutras ainda escapa-lhe de tal modo a noção da realidade que acende a luz e olha em redor transtornado, um instante descrente de que está na cama.
Família não tem e com os amigos não arrisca intimidades, sabe demais que o sofrimento alheio só lhes interessa para a bisbilhotice ou aquele desdém com que os inseguros escondem o próprio medo. De si mesmo sabe que nunca foi de confidências, não lhe passaria pela cabeça consultar um psicólogo, isso tanto por medo como insegurança, mas também pela certeza de que nunca conseguirá libertar-se da prisão em que parece ter nascido ou ainda  criança o aferrolharam.
Ele solteirão, Amélia divorciada, tinham casado tarde, e talvez porque não nenhum deles fosse de arrebatamentos, o tempo foi passando sem ondas nem sobressaltos, nada que prenunciasse a hora em que chegou a casa depois de dois dias de serviço e a encontrou  estendida no chão, imóvel como se estivesse morta.
Suspirou de alívio quando ao tocar-lhe a viu estremecer, dizendo-se que provavelmente fora desmaio, e com alguma dificuldade porque era corpulenta, lá conseguiu sentá-la. Poderia esperar tudo, mas nada o tinha preparado para semelhante bafo de álcool, os espasmos do corpo, a demência daquele rebolar dos olhos, o som rouco das palavras que não conseguia dizer.
Ajudou-a a deitar-se no sofá, viu que adormecia, pôs-lhe uma almofada, agasalhou-a com um cobertor, limpou o vómito e então, ainda em choque, a hesitar se lhe apetecia comer, decidiu por um xanax e um copo de água. Descalçou-se, mas não conseguiu despir-se nem teve consciência de que se deitava, e quando o estrondo de pancadas  o fez acordar cambaleou para a porta, estranhando que não tocassem a campainha.
Durante meses viveu como que anestesiado, revendo por instantes como lhe tinham mostrado o cadáver para que a identificasse, o interrogatório na esquadra, a repetir que não fazia ideia do que a levara a atirar-se da varanda, pois não eram de zangas, nunca lhe ouvira queixas, tinha sido um choque. Mas a ninguém falará do papel que encontrou na mesa e em que Amélia julgou escrever umas linhas, mas o que lá está são apenas gatafunhos e no fim o que parece o seu nome em forma de assinatura.