Devo de reconhecer que, talvez por osmose, nesse tempo a minha visão da Holanda, do mundo e de mim próprio, era igualmente pessimista. E, antes disso me dar conta, cometi o erro de confiar ao papel o que me impressionava e o que mais me incomodava na sociedade em que voluntariamente tinha feito ninho.
Não é que me arrependa ou queira desdizer. Falo de erro porque, vistas à distância e através dos filtros que a idade empresta, as minhas críticas de então mostram que foram antes escritas para entreter do que para corrigir, que não são verdadeiras críticas, mas a expressão dum modo muito latino de brincar com coisas sérias.
Passado um quarto de século sobre esse peché de jeunesse, a maioria dos holandeses que me leram não se devem ter sentido ofendidos com as farpas com que os piquei. Ao meu conhecimento, até hoje chegaram apenas três casos de aversão rabienta, por parte de gente que, se pudesse, me despacharia presto para os fogos do Inferno ou para a terra donde vim.
O primeiro caso foi o de uma senhora grega, acerbamente neerlandófila, que durante meses bombardeou os jornais com cartas a solicitar a minha extradição. O segundo, um sujeito de Rotterdam que, também nos jornais, se queixou de que eu não tivesse capacidade para reconhecer a superior qualidadde gastronómica da costeleta temperada com sal e pimenta, frita em molho de manteiga, servida com acompanhamento de puré de batata e couves do Bruxelas cozidas simplesmente em água. O terceiro é um sacerdote que, vinte e cinco passados sobre a leitura do meu livro, me dizem que continua assanhadamente a excomungar-me em privado e em público, talvez porque a minha prosa tocou naquelas feridas que mais lhe doem.
Ao divagar assim, impensadamente me distraio da hibernação que atrás citei e na qual, como disse, às vezes me coloco para, de modo diferente, poder considerar o que então me rodeava e a pessoa que eu então era. Seguidamente, quando dela acordo, dou-me a ilusão de que encaro o que me rodeia com um olhar fresco e o espírito lavado. Uma forma de renascimento.
Desse modo, e melhor do que se viajasse na máquina do tempo que Wells imaginou, creio poder observar a Holanda de maneira inédita, comparando a de hoje com a de duas décadas atrás, des-cartando o que entretanto aconteceu no desenvolvimento do país e do seu povo, rejuvenescendo a minha atitude.
A primeira grande surpresa ao acordar subitamente na Holanda de 1997, sem dúvida a maior de todas, seria verificar a generalização do optimismo. Incrível! Os holandeses, em massa, a afirmar que tudo corre bem! Desde a limpeza das ruas aos ganhos da Bolsa, das exportações da indústria aos êxitos da economia.
Não somente o homem da rua e o burguês reagem assim mas, inopinado, verdadeiramente espectacular, nas bancadas do Parlamento e nos debates da televisão, em artigos de jornais, os políticos - o que ninguém antes os viu fazer - confirmam que tudo vai bem. Mais surpreendente ainda, e ao contrário do que deles seria de esperar, já não assustam os eleitores com previsões sombrias, mas quase garantem que o futuro será para todos deliciosamente rosado.
Surpresa seguinte. As férias. Desde o tempo em que navegando por mares longínquos alcançou paragens exóticas, o holandês deve ter sido picado por bicho que, simultaneamente, o inocolou com os micróbios da inquietação e da curiosidade. A ubiquidade mundial das dragas, dos rebocadores, dos marítimos e dos homens de negócio holandeses, provavelmente vem daí, mas baseia-se também na solidez de necessidades e resultados práticos. Mas é no fenómeno das férias que o bicho demonstra plenamente as curiosas e funestas consequências da sua picadela.
Duas, três décadas atrás, quando as viagens ao estrangeiro começaram discretamente a entrar nos costumes, o holandês ia ao longo do ano arrecadando parcimoniosamente os seus ganhos, punha uma parte grande a render no banco e, como antes apontei, de tenda e saco às costas, com o resto arriscava-se a descer até aos longes da Dordogne e da Ardéche.
Hoje ele próprio terá dificuldade em reconhecer a pessoa que foi e o seu tímido comportamento de então. A Côte d'Azur, como Paris, Londres, Roma, ou até New York, tornaram-se-lhe lugares onde vai dum salto, com o simples intuito de neles passar o fim-de-semana.
Porque férias neste fim de década, verdadeiras férias, requerem longes e exotismos que no globo terrestre começam a faltar. Quatro, cinco vezes por ano, o holandês abandona em massa o país para sequiosamente visitar a Indonésia, o Japão, o Alaska, subir o Everest, nadar em Acapulco ou no Rio de Janeiro. Encontram-se holandeses na Patagónia e no sul do Egipto, na Nova-Zelândia, nas estepes do Canadá, nas Aleutas e em Bangladesh.
Começando por Fevereiro vêmo-lo a caminho dos desportos de Inverno. Em Março ou Abril goza as férias da Páscoa. Dos princípios de Junho aos fins de Agosto é o grande êxodo das férias do Verão. Em Outubro há as férias escolares. Entre Dezembro e Janeiro o país pára para gozar as férias do Natal.
No momento alto do êxodo do estio, quando , segundo as estatísticas, mais de cinquenta porcento dos habitantes abandonam apressadamente o país, as férias talvez não sejam, como se julga, a demonstração de um desejo de repouso, mas o resultado de um comportamento instintivo, que mistura a curiosidade de procurar o que é exótico, com o afã de fazer como os outros fazem e de ir para onde os outros vão.
Desse modo os holandeses, que frequentemente asseveram querer escapar à sufocante presença dos seus compatriotas, comportam-se um pouco como os bandos de estorninhos: fogem em voo desordenado para aqui e para ali, dão umas quantas voltas e acabam por pousar quase que uns sobre os outros nos ramos da mesma árvore.
Regressam depois à pátria, desencantados e queixosos, garantindo que da próxima vez irão para regiões mais afastadas, mais desertas, não se dando conta que os seus concidadãos fazem raciocínio idêntico.
A massificação do lazer, bem o sei, ocorre em todo o mundo, mas tem na Holanda consequências e alcança proporções fora do corrente, a ponto de me dar a impressão que os antigos objectivos dominantes da existência: o amor, o trabalho, a família, a fé, foram relegados para segundo lugar pela absurda necessidade de apressadamente se viajar para determinado destino.
Uma vez lá chegado o viajante mostra um único desejo: repousar. E uma vez repousado vai então indolentemente andar às voltas em torno de palácios e de igrejas, embasbaca nos museus, faz-se transportar aos cumes dos montes, nada no mar. Vê muito? Com certeza vê. Aprende alguma coisa? Duvido.
De retorno ao ninho tomam-o de imediato os sintomas próprios das aves migradoras. Tudo nele é inquietude, ânsia de voar para longe. Passa os dias apreciando vagamente o que come, observando distraído aquilo que o rodeia e, amodorrado, cumpre as suas obrigações. Mas no momento em que o correio lhe traz os catálogos das agências de viagens, os seus olhos, até aí mortiços, ganham a acuidade dos das aves de rapina. Da mesma maneira que a águia ou o abutre caem em voo picado e infalivelmente seguram a presa nas suas garras, assim o holandês abre o catálogo na página exacta, num relâmpago calcula o preço, telefona a reservar, e desse momento em diante só conhece um fito: partir.