segunda-feira, junho 2

A realidade neerlandesa em forma de sonho (1)

Probiblio, a organização de cúpula das bibliotecas holandesas, desejando em 1997 oferecer aos seus membros um presente de fim de ano, encomendou-me um texto. A versão holandesa foi publicada em edição esmerada, o original português encontrei-o numa disquette pré-histórica.
Pode ser interessante para alguns. É também uma forma de cumprimento aos meus compatriotas holandeses que, serena e civilizadamente, sabem encarar as críticas que lhes são feitas.
Demasiado longo para o nervosismo bloguítico, vai aqui em partes.


Parecerá criancice, ou passatempo de reformado, mas actualmente, uma das minhas maneiras favoritas de olhar para a Holanda, onde há mais de quarenta anos vivo, é fingir que entrei em hibernação.
Brinco com a ideia de que, décadas atrás, me puseram numa dessas câmaras frigoríficas onde as carnes permane­cem longamente sem apodrecer e, por um dos milagres que a ciência cedo tornará corriqueiros, me fizeram agora acordar.
O que sei, o que sinto, penso, o que a minha memória guardou, as imagens da retina, os sons que me entram pelos ouvidos, as emoções, tudo isso é dos fins dos anos setenta. Da Holanda moralista, pequeno-burguesa, provinci­al, dum lado com crentes fanáticos a garantir a existência de um Deus que só amava quem pertencia à "boa" seita. Do outro com "revolucionári­os" que, incapazes de se melhorar a si próprios, tentavam com as suas frustações melhorar o mundo - de preferência longe, nos países onde o sol brilhava todos os dias e onde com centavos já se era rico.
A Holanda que assim se me apresenta, ainda aqui e além acreditava na ética do trabalho, tinha descoberto alegremen­te que a tudo se podia dar um jeito. Que nos cofres da nação havia dinheiro bastante para subsidiar os artistas, que só o eram nas visões que lhes enchiam a própria cabeça; dinheiro bastante para acomodar os descontentes; para pagar aos que iam "ajudar" o Terceiro-Mundo; para criar e manter um colossal corpo de organismos destinados a "fabricar" felicid­ade e a garantir que, à menor dor de cabeça, ao menor sinal de descontentamento consigo mesmo ou com outrem, o cidadão se podia dirigir a um guichet onde as suas preocupações, mesmo as ridículas, eram tomadas a sério, ponderadas, discutidas, relatadas, analisadas por comissões e, finalmente, resolvidas.
Desse curioso tempo em que a revolução não era somente política, histórica, religiosa e social, mas tudo agarrava com os seus tentáculos, desde o desenho das pontes à quantidade do leite nas creches, a impressão que guardo é de que então somente mesmo os cabeçudos de nascença teimavam em não querer ser felizes.
Havia, evidentemente, os grandes sustos, as ameaças de guerra, perigos inesperados. Por uma qualquer birra os russos arreganhavam os dentes, ameaçando lançar a bomba, obrigando os medrosos endinheirados a cavar nos seus jardins abrigos anti-atómicos, atulhados de latas de conversa e garrafas de água. Os árabes, esses nem sequer ameaçavam: se lhes dava na veneta fechavam as torneiras do petróleo e deixavam o holandês (e os mais) sem automóvel, o seu brinquedo preferido.
Férias de hotel ou gozadas em países exóticos - Portugal era exótico - eram entretém para ricos. A grande massa dos remedia­dos descia de saco às costas e tenda até às Ardennes, ou arrisca­va-se a explorar a França, com os ohs! e ahs! admirati­vos de Livingsto­ne ao chegar ao Zambeze.
A culinária era decepcionante, sensaborona, as reacções ao alho de uma violência que tocava o fanatismo fundamentalista. Um queixal podre, o cheiro a suor, a roupa suja, isso eram odores aceitáveis. Mas tinha você comido alho? O seu hálito fedia a alho? No café, no eléctrico, no es­critório, os bem-pensantes levantavam o dedo acusador, para de seguida protegerem demons­trativa­mente o nariz com o lenço, não fosse dar-se o caso de aspirarem a peçonha.
Aliás, todo o alimento que deitasse cheiro era suspeito, um atentado ao ideal das cozinhas e das casas inodoras. Eu morava então num quarto andar e recordo a fúria com que os vizinhos de cima, de baixo e dos lados reagiram ao churrasco que eu tinha feito na varanda. Cheiro de carne assada com alho! Aquele fumo a entrar-lhes portas adentro! Não podia ir eu fazer uma porcaria daquelas para outro lado? Tinha de ser na varanda?
Havia também o sexo. Melhor dizendo: a descoberta do sexo. Do mesmo modo que o fenómeno das férias começou pelos muito ricos e foi lentamente alastrando pelas outras classes sociais, assim a orgia sexual, que até essa data era sobretudo apanágio da aristocracia decadente, e dos meios boémios, foi nos anos setenta descoberta pelos "revolucionários" e apresentada a um povo que não sabia exacta­mente se aquilo era para gozar, se era dever, ou impres­cindível sinal de modernidade.
Pelo sim pelo não deitaram-se os holandeses à orgia, ao sexo livre e às variações eróticas, com um afã maior do que o que costumavam ter na sua clássica conquista de terra ao mar. Em ambas as actividades ganharam fama e o que já tinham feito com a hidráulica repetiram-no em seguida com a pornografia, tornando-a uma indústria florescente e justamente reputada.
Que mais vejo dessa época? Um massiço e irritante proseli­tismo, como se dentro de cada holandês habitasse então um missionário, o qual não somente pregava e apregoava as suas con­vicções religiosas, políticas, sociais, mas à viva força queria que todos escutassem também a sua maneira de salvar a África, as suas ideias sobre a América do Sul, as suas opiniões sobre os aborígenes da Austrália, o processo correcto - o seu - de plantar flores, criar porcos, de organizar e produzir.