- Antigamente talvez se pudesse dizer isso. Hoje está tudo mudado - assegura ele, acendendo um cigarro para esconder a sua irritação, e procurando guiar a conversa para a excelência do presunto local e dos vinhos de Sotoserrano.
Neste momento, todavia, nem o presunto nem os vinhos me interessam, mas de Las Hurdes não quer ele falar, e despedimo-nos com protestos hipócritas de amizade. Fica-me a desagradável impressão de que, noutros tempos, não teria hesitado em ir informar a Guardia Civil do meu estranho interesse.
Amanhã de manhã cedo meto-me a caminho, a satisfazer um fascínio nascido no dia remoto em que, na nossa aldeia, um cinema ambulante exibira o documentário realizado por Luis Buñuel em 1932: Las Hurdes - terra sem pão.
Criança com vida farta, eu conhecia a miséria por vê-la de perto, mas nunca ela me incomodara excessivamente. Talvez porque havia dignidade na indiferença com que homens e mulheres se vestiam de andrajos, e na aceitação de que, dias a fio, o seu comer não passava de pão e cebola, cebola e pão. As misérias da África e da Ásia eram longínquas e demasiado exóticas para me impressionar, mas o que o filme de Buñuel mostrava passava-se, por assim dizer, ali ao pé da porta.
Um pouco mais de fome ou de doença, um temporal que levasse as terras de cultivo, e quem sabe se a nossa aldeia não viria a sofrer o terrível destino daquelas alquerias que pareciam suspensas nas encostas.
Choupanas com menos de dois metros de alto, feitas de estacas e de ramos, ou então de penhascos amontoados, com telhados de ardósia e pedra lisa. Algumas paredes toscamente recobertas de um barro esbranquiçado. Terríveis de ver, com a porta como única abertura. Mais terríveis ainda ao descobrir-se que no único aposento se albergavam os humanos e os animais.
Dias antes, em Salamanca, o jornalista tinha rido dos meus medos de criança e acrescentado as suas próprias recordações:
- Quando lá estive em 1972, ainda nem todos os aldeãos tinham introduzido o 'melhoramento' de levantar um tabique a separar os animais da casa. E muitas vezes o aposento era totalmente ocupado pela palha que servia de cama à família inteira. Os homens, pude vê-lo numa ocasião em que entrei na casa de um que estava doente, deitavam-se completamente vestidos, sem tirar as botas e com o chapéu na cabeça.
Falo a um catedrático
jubilado que me encarara com ironia:
- Que raio procuras tu em Las Hurdes, se até os Romanos desdenharam delas
e os Árabes passaram de longe? Antigamente ia-se lá para ver a miséria
legendária dos hurdanos, mas comparada com ela os pobres de hoje têm vida de
rico. Nas aldeias fizeram-se casas boas, algumas mesmo grandes. Por toda a
parte há electricidade, telefone, estradas de asfalto.
Os montes, esses infelizmente é que não mudam, e as pessoas agora atrevem-se a emigrar, o que quase não acontecia no passado. Os terrenos onde se cultiva alguma coisa, pouca, medem-se em metros, que o mesmo é dizer em palmos. Há o mel, colhe-se algum azeite. E que mais? Uns hectares de batatas, as cabras... Os burros que são ainda imprescindíveis. Sabes que em todas Las Hurdes se contam as vacas pelos dedos de duas mãos?
Eu sabia-o dos livros, mas seria pena interromper o testemunho vivo. Ele voltou de novo ao passado, falando do médico seu amigo que, nos anos sessenta, em Pinofranqueado, era o único em toda a redondeza. E que uma noite foi chamado a acudir a uma mulher que, em Ovejuela, então a uns 12 km de caminho pela serra, sofrera um aborto.
Nas noites sem lua, como essa, via-se passar o Sputnik, e o médico recordava que o satélite russo tinha feito três rotações em volta da Terra, antes dele próprio alcançar o seu destino. Imagina tu! Há uns escassos trinta anos!
Las Hurdes foram isso. A grande miséria, um incrível isolamento, o atraso causado pelas pressões seculares e conjuntas dos senhores e da natureza. O povoamento inicial deve ter sido mínimo e só a partir do séc. 13 é que se formaram os primeiros núcleos, as majadas, currais que mais tarde se viriam a converter em aldeias.
No séc. 16 Las Hurdes eram interessantes bastante para estarem sujeitas a dois señorios, o de Granadilla e o de La Alberca, senhorios esses que por sua vez pertenciam ao poderoso duque de Alba. Um contrato firmado em 1531 entre o duque e os representantes do povo, com a finalidade de pôr cobro aos abusos de autoridade dos senhorios, acabara por na verdade atar os hurdanos a um estado servil em que iriam ficar até ao séc. XIX.
As 18 cláusulas dele pouco mais lhes deixavam que o direito de respirar: não lhes era permitido vender os seus terrenos, nem dá-los, nem trocá-los com gente de fora, nem arrendar os pastos. Não podiam fazer sementeiras junto das colmeias (que eram dos senhorios, nem tirar mato do monte, nem pescar, nem cortar madeira, nem sacar cortiça.) Além disso tinham ainda de pagar anualmente 7.500 maravedis ao duque, e porque este apreciava as perdizes, exigia-lhes também, entre as festas de São João e do Natal, a entrega de 75 pares das mesmas.
A partir de 1835 os hurdanos puderam finalmente adquirir as terras em que viviam e trabalhavam, mas não foi isso que lhes aliviou a miséria, pois nas montanhas elas reduziam-se, reduzem-se ainda, a escassos hectares da chamada 'terra sem terra', onde o solo que cobre as pedras tem apenas uma espessura de 10 a 20 cm.
Saio de La Alberca com a emoção de quem parte para uma viagem de descoberta, vagamente envergonhado do meu conforto. Nas voltas da estrada brilha por momentos ao longe o topo nevado de Candelário (2.373 m) e tendo percorrido menos de três quilómetros estou no Puerto del Portillo (1.230 m) e estaco de pura surpresa com a grandiosidade do panorama.
Diante de mim estende-se a vasta sucessão das escuras montanhas de Las Hurdes, capeadas de pinhos, tendo por majestoso pano de fundo o Pico Almanzor (2.592 m) da Sierra de Gredos.
Volto-me e o contraste não pode ser maior: envolta numa luminosidade irreal, a planície espraia-se por mais de uma centena de quilómetros, bem para lá de Salamanca. Nela tudo fala de fertilidade, enquanto que as montanhas escondem a sua pobreza sob o manto verde das encostas.
A descida faz-se lentamente e nalgumas curvas quase é preciso parar. No vale de Las Batuecas há frescura e serenidade, mas em parte nenhuma se vê gente ou sinais dela. Até que entro em Las Mestas. Aldeia pequena, aconchegada, onde pergunto o caminho e digo ao que venho, para quebrar assim a desconfiança que a minha presença desperta.
A estrada é íngreme, mas
razoável. Passado Cabezo entra-se verdadeiramente em Las Hurdes Altas e daí a
El Ladrillar surpreende-me o número de anciãos que encontro sentados nos
muros a aquecer-se ao sol. Na aparência indiferentes, mas seguindo com os olhos
o desconhecido.
A um homem que cava um campo diminuto peço que me fale da vida em Las Hurdes.
- Está tudo muito melhor. E
são poucas as aldeias sem cemitério. Para enterrar o velhos - acrescenta ele
com um sorriso amargo. - Que os novos fugiram daqui, sem vontade de voltar.
Felizmente já não é a miséria que conheceu até há poucos anos, o desespero de
não saber como ganhar para comer, ou a angústia de que não lhe acudissem na
doença.
- Mas fora isso... Que me dão estas quatro oliveiras e o bocadito de terra? O senhor com certeza os viu por aí abaixo, os reformados sentados nos muros como os pardais. Esse é o futuro que temos e com ele teremos de nos contentar. Mas para lhe dizer a verdade não faltam ocasiões em que apetece mais a morte do que esta vida.
El Ladrillar acolhe-me mal. Às minhas perguntas os moradores encolhem os ombros ou voltam-me as costas. Desço para Vegas de Coria, maior que as demais aldeias. O edifício que a domina é tão desmedido em comparação com os restantes, que pergunto o seu uso. É um colégio religioso de ensino secundário, informa-me um rapaz com um entusiasmo de fanático. Em seguida louva Deus, a Igreja Católica, as autoridades e a beleza dos montes que nos cercam. Reparei eu nos slogans que por toda a parte se vêem escritos nos muros: Deus vê-te! Só há dois caminhos. Qual escolhes? Deus espera por ti de braços abertos!
- Deus - continua ele - salvou Las Hurdes, trouxe alegria, deu-nos bem-estar.
Agradeço a informação e ponho-me a caminho de Nuñomoral, um tanto desnorteado, porque em nada coincidem as casas bem arranjadas com a miséria da minha espectativa.
Dou boleia a um homem
de idade que vai estrada acima, curvado sob o sol do meio dia. Também ele acha
despropositado o meu interesse pela região e o afã em querer ver o que já não
existe.
-Isto já não é como antigamente. Hoje todas as aldeias têm igreja e cemitério.
Mas acaba por me contar a sua vida de pedinte, dos dez aos trinta e tal anos a palmilhar os caminhos de Espanha, até ao dia em que tinha encontrado trabalho em Bilbao.
Se aceito um copo. Aceito. Chegamos a Asegur e paramos diante duma casinha caiada e florida, à beira da estrada. A mulher aparece um momento, traz o vinho, ele enche os copos. E eu recordo a minha incredulidade quando o catedrático tinha dito que nos velhos tempos, tão grande e geral era a miséria, que em Las Hurdes a vida de mendigo passava por ser das mais proveitosas e socialmente das mais respeitadas.
O ex-pedinte confirma. E é ele que depois me guia a uma ruela onde pela primeira vez defronto um grupo de casas feitas de pedra solta, o telhado de pedras lisas, com a porta como única abertura e um só aposento.
Passada a surpresa da minha presença, as mulheres que costuram ao sol falam dos homens que estão em França, e de como são longos os dias de quem espera. O meu pedido discreto para poder entrar é recusado com firmeza: as casas são como as mais, sem nada de especial.
Continuo para Casares de las Hurdes. Um cartaz em letras góticas anuncia à entrada da povoação que sábado à noite, na discoteca Peña, haverá Dirty Dancing.
O hostal Montesol tem um bar com vista para a serra onde entro a matar a sede. Esperava-o deserto, mas está á cheio com uma clientela exclusivamente
masculina, totalmente embriagada, trocista ao ouvir-me que peço um café e água. Pro forma peço também um anis, mas em vez dele a proprietária serve-me um enorme copo de Chinchon Seco, que apenas toco com os lábios sem o engolir, tão presentes me estão as palavras ouvidas um dia ao meu amigo Xavier Domingo: "O Chinchon Seco Especial tem à volta de 70% de álcool e causa uma bebedeira muito próxima dos ataques de loucura."
Provo um gole de nada, e é como se da garganta ao estômago me envolvesse uma grande labareda. Vou para a varanda de copo na mão, com o pretexto de admirar a paisagem, e despejo-o num vaso de sardinheiras.
Passo a noite assombrado por maus prenúncios. No dia seguinte vou encontrar de novo casas tradicionais em El Gasco e em La Fragosa. Algumas delas ainda habitadas, mas de novo impenetráveis à minha curiosidade.
Em Riomalo de Abajo um informante voluntário desfia estatísticas:
- Las Hurdes, 470 km quadrados, 40 aldeias, 8.000 habitantes. Entre homens e mulheres saíram de Riomalo uns 500 emigrantes, ficaram cerca de 120 pessoas. Há trinta aparelhos de televisão, 25 automóveis e 4 camiões. Nas casas velhas não vive ninguém, não senhor.
Em Pinofranqueado mostram-me o parque de campismo à entrada da povoação e ressentem-se que eu me não entusiasme. Mostram-me também, como prova de modernidade, que por detrás da igreja se encontra a Calle de los Derechos Humanos. Não desdenho, mas não vejo razão para aplaudir.
Caminomorisco, com a única bomba de gasolina em muitas dezenas de quilómetros ao redor, em nada lembra Las Hurdes: é quase uma cidade, tem serviços, bancos, lojas, a vida recatada a que na província obriga a desproporção entre o elevado número de mulheres e os relativamente poucos homens. Nela nada convida a parar ou a ficar.
O meu coração enternece-se em Las Erías e Aldehuela, dois fins-de-mundo com ruas tão estreitas que os moradores se podem dar a mão de varanda para varanda, e hortas tão diminutas que para caber nelas o homem e o seu burro têm de ir atrás um do outro.
Chego a Nuñomoral passa das duas e sento-me num restaurante vazio. A patroa vem direita a mim com má disposição e quase me grita que é cedo de mais. Para uma só pessoa não se vai pôr a cozinhar e os homens em Nuñomoral só almoçam por volta das quatro ou cinco. Que venha mais tarde.
Retorno a Vegas de Coria.
Amesendo com um grupo de maquinistas e camionistas de Cáceres que andam a
alargar as estradas.
- Las Hurdes - diz um deles - é a pobreza que se não vê. Não há indústria, não
há comércio, não há lavoura. As estradas vão ficar boas para os turistas, se
bem que os que por aqui aparecem não deixam vintém.
Mas porque é que, já que escrevo sobre a Espanha, não vou antes para Sevilha ou
Barcelona? Não é aí que vão acontecer coisas grandiosas, a Expo, o comboio de
alta velocidade, os Jogos Olímpicos?
Um colega replica-lhe malicioso que, português, eu certamente acho mais
interessante vir ver se a miséria de Las Hurdes é maior que a de Portugal, e
por um momento paira sobre nós um ar de discórdia. Mas as minhas explicações e
a afirmação doutro, de que já não há espanhóis nem portugueses, que somos todos
europeus, desanuviam o ambiente, justificam outra garrafa de vinho.
Mais tarde, de puros na boca e ligeiramente "tocados",
despedimo-nos com abraços fraternais. Eles para as obras, eu para o Cottolengo,
a instituição religiosa misto de asilo, maternidade e hospital, que é em Las
Hurdes o sinónimo da caridade cristã.
As freiras querem falar do presente e do futuro, enquanto que eu gostaria que me falassem do passado. Da primeira superiora do Cottolengo, madre Maria Manuela, que para rasgar um caminho para Nuñomoral se pôs a trabalhar de picareta à frente de um grupo de homens, e já levava três quilómetros feitos quando as autoridades deram conta do empreendimento. Mas para as simpáticas sucessoras tudo isso é história antiga. Os seus interesses são outros. Pausadamente acompanham-me ao portão e desejam-me boa viagem, chamando sobre mim a benção do Senhor.
Novo dia. Volto a El Gasco, que me tinha agradado. Vou-me a pé em busca do Chorro, a cataracta que salta 70 m de rocha e alimenta as águas do Alagón, um dos grandes afluentes do Tejo. Forneço-me de pão, queijo, água, uma garrafa de vinho, e num gesto sentimental de despedida subo os 1592 m do pico da Canchera.
Fico-me ali a cismar. Com a impressão de em Las Hurdes quase ter tocado algo que sei existir, mas que finalmente recusou desvendar-se-me. Talvez porque a apressada ânsia de querer ver não tem cabimento nos lugares onde o tempo passa lentamente, e como que contra vontade.
Depois da azáfama da E80, a estrada de duas faixas em que se aperta boa parte do trânsito entre a Espanha e Portugal, a C515 que vai de Ciudad Rodrigo a Béjar pareceu-me estranhamente deserta. Nem um carro, nem um camião, nenhum tractor na planície ondulada, onde as azinheiras se contavam por dezenas de milhar e o único sinal de vida eram as manadas de vacas e touros pretos como azeviche.
Para quem vem da agitação, uma paisagem assim é ligeiramente inquietante, o carro deixa de ser apenas meio de transporte, para se transformar numa espécie de invólucro em que os objectos familiares se tornam fetiches protectores. O livro que não coube na mala, o binóculo, a garrafa de água, o saco com a merenda para o caminho, a chave inglesa esquecida no assento, são outros tantos testemunhos de que não pertencemos àquela desolação, e que a nossa passagem por ela é confortavelmente efémera. O vago receio de nos vermos sós, alterna com a vaga esperança de que a próxima curva traga mudança, mas neste caso, depois de cada curva o abandono era idêntico.
Enxerguei um painel que indicava Pedrotoro, sem notar um ser vivo e mal lhe apercebendo os telhados. As azinheiras tinham sumido, dando lugar a um solo mais seco, mais pobre, sem relevo e de longas rectas. Ao fim da maior, cinco enfadonhos quilómetros, novo painel, este a anunciar o rio Tenebrilla.
Por curiosidade, porque em parte nenhuma via água, abrandei o andamento e dei-me conta de que com certeza só no Inverno corria ali um riacho. O seu leito, intensamente seco, assemelhava-se antes a um caminho de aldeia mal tratado.
Tenebrón é logo adiante e
aí, a uns escassos vinte quilómetros da modernidade de Ciudad Rodrigo, tive a
sensação de voltar ao passado.
Aldeia minúscula, plaza minúscula, gente que no traje e até nos gestos
parecia viver ainda nos anos cinquenta. Entrei no café para uma cerveja e,
gozando a frescura, pesados os prós e contras, decidi retomar o caminho, agora
com o pico da Peña de Francia (1.732 m) a fazer de pano de fundo à monotonia da
planura.
Escondida numa cova, junto doutro ribeiro seco, Morasverdes, povoado cor de barro onde me fez sorrir o painel a indicar que, metendo para a esquerda, se ia para Diós lo Guarde. Mas em vez de lucubrações filosóficas sobre a fragilidade da existência ou a utilidade das viagens, ocupei-me a imaginar como é difícil inventar nome para os moradores de tais lugares. Diós los Guardenses? Guardeses? Morasverdeños? Tenebronenses? Tenebrosos?
Entretido o cérebro nesse jogo, os olhos sofriam menos com a uniformidade da estrada, seguiam os abutres que circulavam, agourentos, à espera de morte que lhes desse alimento, enterneci-me com o jerico que ia pela berma puxando uma carroça vazia, acompanhado dum cão. Ambos apressados, a caminho dum destino ou tarefa, humanamente sorumbáticos, não se vendo em parte alguma dono a que pertencessem.
As primeiras colinas surgiram densas de pinhos, mostrando aqui e além uma
aberta atapetada de carqueja em flor. A estrada começou uma subida lenta e
tortuosa, passando El Maíllo, outra aldeia parada. Nela um convento meio
arruinado, a primeira fartura de água e, num cruzamento, a impressão de me ter
enganado no rumo.
Aos dois homens que num alpendre reparavam um tractor, a minha pergunta causou consternação. La Alberca? Não sabiam, não eram dali, tinham vindo de Andaluzia à procura de trabalho.
Um supunha que fosse para a direita, para o outro devia ser em frente, mas perguntasse na padaria, que lá com certeza me diriam. Não foi preciso. Ao virar a esquina uma tabuleta indicava La Alberca a apenas dez quilómetros.
Por um instante estive tentado a subir à Peña de Francia, que se erguia imponente à minha direita e como que ao alcance da mão, mas o calor e o cansaço puderam mais, segui o meu destino.
La Alberca é, com razão, monumento nacional. Por decreto de 1940. Visitá-la nos dias de canícula, quando os turistas são aos milhares, deve ser experiência para não repetir e esquecer. Chegar como eu cheguei, ao fim de uma tarde soalheira de Março, com uma única loja de souvenirs aberta, e tão pouca gente que se ouviam os passos ressoar no lajedo, é recordação que fica.
Mau grado as antenas da televisão, a electricidade, os carros, a primeira impressão é de um grande recuo no tempo. A Plaza Mayor é pitoresca, embora sem a arcaria tradicional, apenas uns quantos pilares de granito que sustentam varandas modestas e oferecem uma sombra insuficiente. Nela se encontra também o pelourinho, o Ayuntamiento, e um cárcere tão diminuto que confirma que a criminalidade nunca foi um problema local. O atractivo maior está nos becos e nas ruas tortuosas, ladeadas de casas com inesperadas paredes de taipa e enxaméis de madeira de castanho.
A maioria das habitações tem duas portas: uma estreita, para as pessoas, a outra larga, para a cavalariça ou o estábulo, que em muitos casos continuam a ser utilizados. Esculpidos nos dintéis de pedra vêem-se, sobre alguns escudos de ordens religiosas, as datas da sua remota construção, 1610, 1616, 1702…Num deles, o sinistro emblema da palma e da espada assinala que ali esteve instalado o Santo Ofício.
Por costume antigo, na maioria das casas a porta de entrada permanece aberta o dia inteiro. A escada, de um só lanço e muito inclinada, passa pela sala no primeiro andar e segue até ao segundo, onde ficam a cozinha e o cuarto'l salaero, a alcova que faz de despensa.
Curiosamente, no passado as cozinhas não tinham chaminé: o fumo do lume servia para defumar, as castanhas, os presuntos e os chouriços, que no Outono se penduravam num estrado construído a pouco mais de dois metros sobre a lareira.
Esses costumes artesanais vão desaparecendo, mas a aldeia orgulha-se ainda da sua produção de presuntos e enchidos, e do torrón, "o único sem misturas", feito nas lareiras em caldeirões onde se remexe lentamente a mistura de mel, nozes e claras de ovo.
La Alberca deve alguma da sua recente fama a Maurice Legendre, escritor francês que nos anos vinte lhe dedicou vários trabalhos, e cujo túmulo se acha na igreja de Peña de Francia. Mas antes e depois dele cantaram-na Ungaretti, Dámaso Alonso, Unamuno, Camilo José Cela, e foi cenário de El Lazarillo de Tormes e Marcelino Pan y Vino, filmes ainda não de todo esquecidos. E para que o visitante não vá julgar que a aldeia é um buraco sem história, alguns moradores lembram, como se fosse ontem, a visita do rei D. Juan II em Maio de 1445, a de D. Alfonso XIII em Junho de 1922, a passagem, numa manhã de Abril de 1954, dum longo cortejo de automóveis que levava Franco de visita às aldeias miseráveis de Las Hurdes.
Num opúsculo de 1693, Verdadera Relación y Manifesto Apologético de la Antiguedad de Las Batuecas y su Descubrimiento, relata o letrado Thomaz Gonzáles de Manuel, que em 1412 a visitou também "aquel Angel del Apocalypsi, Apóstol de Valencia, gloria y honra de nuestra España y de la Orden de Predicadores, San Vicente Ferrer." Na mesma obra fala-se doutro santo, o mais importante de todos porque local, o muito bondoso Simón Vela, que depois de uma vida dissipada em Paris acabou por se refugiar das tentações do mundo nas alturas de Peña de Francia, e aí continua a valer a quem pede a sua intercessão.
O leitor será com certeza diferente, mas eu, se vou de viagem e chego a um lugar que me arrebata, apresso-me a absorver o ambiente e a acumular impressões, pois de antemão sei que nunca tarda o momento em que se me tornará penoso sentir-me apenas aquele que está de passagem, e ali não tem raízes.
Por isso, dos meus quatro dias em La Alberca, só lá passei de facto o primeiro, os restantes gastei-os a visitar Las Hurdes. Mas todas as noites regressava ao hostal, estabelecimento construído para albergar as multidões do Verão, e onde eu era agora o único hóspede. O que de modo algum significava solidão. Os quatro empregados de mesa, o barman e a numerosa família da proprietária, insistiam que lhes fizesse companhia, e assim comíamos juntos, assistindo em simultâneo a dois programas de televisão em dois televisores gigantescos, colocados um sobre o outro a meia altura da parede. No de cima, a que tinham cortado o som, passavam as cenas de Los Años Meravillosos; no outro, com o volume no máximo por deferência para com o avô surdo, vivia-se a excitação de La Rueda de la Fortuna.
Despedíamo-nos a altas horas. Eles para a cama, dando-me a chave da porta para que voltasse quando me apetecesse. Eu para as ruas desertas, onde três noites a fio passeei, a imaginar-me menos estrangeiro, um peregrino doutras eras, gozando o murmúrio indistinto das conversas que trespassavam as paredes, iludindo-me que ouvia tropear nas lajes os cavalos da mala-posta, que pelas sombras da Plaza Mayor se esgueiravam vultos de capa e espada.
Na última noite sentei-me a descansar nos degraus da igreja, meditando sobre a pena que é já não haver os milagres de antigamente. Como, por exemplo, o de 6 de Setembro de 1655, quando "entre las tres y las cinco de la tarde, y el dia siguiente por la mañana, sudó el Santo Cristo en este lugar de La Alberca".
Assim escreveu com sobriedade o cronista, mas a tradição diz que foi suor de sangue, e ao recordar o facto não pude evitar um calafrio. Porque a imagem, cujo milagre eu me atrevia a pôr em dúvida, estava ali a dois passos, dominando o altar-mor com a sua expressão severa.
Talhada, ao que dizem, pelas mãos consagradas de Alonso González de Berruguete ou Juan de Juni, ambos alunos de Michelangelo, e capazes como ninguém de dar vida à madeira inanimada. Sob a imagem tinha eu visto também o relicário de prata, com duas relíquias não menos impressionantes: um fragmento de um espinho da verdadeira coroa de Jesus, certificado autêntico pelo cardeal Ottobono, e um retalho da sobrepeliz de Benedito XI.
Tomado daquele inquietante sentimento que por vezes aflige os infiéis perante o mistério, fui-me dali a passos lentos, evitando olhar para trás, onde adivinhava presenças que me seguiam e era melhor não encarar.
Na manhã seguinte resolvi prosseguir viagem, mas os quilómetros percorridos a subir e a descer os montes de Las Hurdes tinham feito baixar o nível da gasolina à alarmante zona vermelha. Quando à mesa do pequeno-almoço perguntei onde ficava a bomba, houve um momento de ligeiro embaraço: La Alberca tinha tudo e era, como me tinham dito, monumento nacional, mas faltava -lhe esse símbolo da civilização.
- Para que lado vai? – quis saber a proprietária.
- Cáceres.
Então estava a coisa mal. Além de ser domingo, dia em que muitas fechavam, a bomba mais próxima era a de Tamames, a vinte e dois quilómetros no sentido oposto, pela estrada de Salamanca. A seguinte era na boa direcção, em Caminomorisco, mas a mais do dobro da distância. E a família inteira desceu comigo a avaliar para quantos quilómetros daria a gasolina que restava.
Depois de alvitres inúteis e alguns também inúteis abanões ao carro – "P'ra ver se o ponteiro mexe" – ganharam os optimistas: o depósito devia ter ainda uns dez litros, o que dava e sobrava para o caminho todo. E fingindo que riam dos meus temores, recomendaram que me acautelasse com os loucos na estrada e tiraram os lenços para me acenar boa-viagem.
Cheguei sem empeno a
Caminomorisco, mau grado o carro dar de vez em quando umas tossidelas e uns
solavancos de mau agouro.
E agora, porque parece demasiada coincidência para ter acontecido de verdade,
hesito contar que também na bomba local a pessoa que me atendeu era
visivelmente chanfrada.
Vestida de domingo, cabeleira enriçada em molde de colmeia, um mau humor visível, quando lhe disse que queria o tanque cheio a mulher explodiu: não me ia vender mais de mil pesetas de gasolina.
- Mas porquê? Não tem que chegue?
- Tenho de sobra, mas cá toda a gente só mete mil pesetas de cada vez.
Argumentei que ia para longe, para Cáceres, e ela retorquiu que nas estradas de Espanha não faltavam bombas. Metia mil pesetas e era decidir, estavam outros à espera de vez.
Tive de me conformar, mas num acesso de indignação impotente, modifiquei logo ali os meus planos. Cáceres ficaria para ocasião mais propícia, e em vez de rumar para sul meti direito a Portugal, seguindo uma estrada calma que me gratificou com duas surpresas: Santibáñez el Alto, aldeia com castelo, alcandorada numa colina isolada na planície, junto ao lago da barragem de Borbollón; e num desvio da C513, treze quilómetros para norte, uma pérola: San Martín de Trevejo, aldeia tão pitoresca que custa a acreditar quando se entra nela, e logo se pede à Providência que para todo o sempre lhe conserve as casas, as ruas e a Plaza Mayor no estado em que as vi.
De lá rodei para Valverde del Fresno, terra grande, enriquecida nos tempos em que o contrabando com Portugal era a versão local da corrida do ouro.
Surpreendeu-me o abandono da estrada para a fronteira, dezassete quilómetros desertos, mas a preocupação maior tive-a quando o asfalto terminou de súbito junto de um fosso.
Meti nele o carro, sentindo que as rodas patinavam na lama, e temendo que a qualquer momento me despenhasse no ribeiro. A rampa oposta, de terra solta, levava a um pontão de madeira, sem parapeito, e subindo depois umas dezenas de metros de empedrado, alcancei um edifício branco.
Os dois guardas-fiscais sentados à sombra a jogar as cartas, não apreciaram a minha presença: toda a gente sabia que ali a fronteira estava fechada, e por isso tinham de me mandar de volta para Espanha.
Mostrei-lhes o mapa, onde a bandeirinha indicava a passagem da fronteira, mas não os convenci. A bandeirinha era verde, concluiu com razão um deles, significando que a fronteira só estava aberta às vezes.
Para provar a minha boa-fé mostrei-lhes também o passaporte, mas eles abanaram a cabeça: andavam com o jipe em serviço de patrulha, não tinham ordens para carimbar papelada.
Sem mais argumentos, e sentindo que se me acabava a paciência, encolhi os ombros, resolvido a voltar para donde tinha vindo.
Foi então que eles me convidaram para que me sentasse um bocado à sombra. Bebíamos um copo juntos. Não tinham coração para me ver ir embora por aquele calor, até lhes parecia milagre que tivesse atravessado o fosso sem problemas, porque já lá tinha havido desastres.
Sabia eu de quem era a culpa? A culpa disto tudo era da CEE. Não fosse a CEE estavam as coisas como dantes, não havia mudanças, nem confusões, não se complicava a vida de ninguém. Por exemplo: o posto onde estávamos. Antigamente ficava aberto das sete da manhã às sete da noite, mas agora, em vez de o deixarem assim, ou de o abrirem de dia e de noite, tinham-no quase sempre fechado. E a isso é que chamavam progresso! Os mandões da política não se cansavam de apregoar quem em 1993 iam desaparecer as fronteiras, mas para acreditar só vendo primeiro.
A meio da segunda garrafa, uma deles, outra minha, tínhamos esboçado uma CEE em que os guardas das diferentes polícias, e os escritores das diferentes línguas, veriam aumentar os seus privilégios e rendimentos.
Regulamentada a nossa
Europa e bebido o último copo, chegou a hora da despedida. Eles
entreolharam-se, sorriram como se tivessem lido os pensamentos um do outro,
hesitaram antes de me estender a mão.
Claro que eu tinha de voltar para Espanha, informou o mais velho, sorrindo, com
uma satisfação que me pareceu descabida. Era o regulamento, tinha de carimbar o
passaporte, contra isso nada podiam fazer. Mas se metesse outra vez pelo fosso,
era capaz de me ferir e do carro ficar lá enterrado.
Ora eles não queriam ficar com esse remorso na consciência. Portanto, em vez de meter por onde tinha vindo, eu ia fazer um pequeno desvio em Portugal. Era proibido, mas fechavam os olhos a essa transgressão, pois era o único caminho seguro. Percorridos uns trezentos metros, onde havia uma estrada asfaltada, tão nova que ainda a não tinham inaugurado, eu virava então à esquerda, que era o caminho da Espanha, e lá escolheria uma fronteira "que tivesse os carimbos".
Despedimo-nos. O sol ia baixo, a brisa tornara a tarde amena, e eu, sem razão que pudesse traçar, talvez só pelo cheiro das giestas e da urze, ou por me saber no mundo das minhas recordações mais antigas, senti-me tomado por uma grande serenidade.
Deixei o carro fazer lentamente a descida, e quando cheguei ao cruzamento de que os guardas tinham falado, compreendi o sofisma e tive de sorrir: para o lado espanhol a saída estava fechada com grandes blocos de cimento. O único caminho aberto era o de Penamacor.
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