segunda-feira, abril 12

Uns lotes à beira-mar

Os dois homens saíram para o terraço e o que parecia estrangeiro cobriu discretamente a boca a suprimir o arroto. O barão, ainda na sala, chamou a criada que começara a arrumar a mesa:

- Serve o café ali fora, à sombra, e não te esqueças da aguardente. Despacha-te.

A rapariga foi-se sem responder e ele apanhou o chapéu, a bengala, abotoou o casaco, saíu a juntar-se aos outros que descansavam encostados à balaustrada.

- Linda vista, hein? Daquele ponto... - o barão, homem nos sessenta, ergueu o braço e começou a descrever um círculo. - Até acolá... O mar por assim dizer à porta... Com aquele bocado de ria, a praia, a meia encosta... Faz-se aqui uma das coisas mais belas do Algarve.

Herr Donner, charuto entre os dentes, tinha acompanhado sem interesse o movimento da bengala, ao mesmo tempo que apalpava os bolsos à procura de fósforos.

- Uma das coisas mais belas do Algarve - repetiu o barão. Você não acha, Sousa?

Sousa achou que sim, sem olhar, ocupado a acender o charuto do alemão,  acrescentando depois:

- É questão de capitais. Sobretudo capitais com vistas largas. Um promotor capaz realiza aqui um projecto de nível internacional. Mundial! Para se comparar ao melhor da Costa del Sol. E de lucro, porque o Algarve não é a Espanha. O turista que vem cá é doutra classe, tem meios.

- E fica mais tempo.

- E fica mais tempo. Absolutamente.

Falava para o barão, porque Herr Donner, absorto, o charuto agora no meio da boca, se tinha voltado para o mar e parecia não ouvir.

A criada chegou com o café, pôs as xícaras e os cálices sobre uma mesita de ferro que foi preciso calçar porque balouça­va. O barão inspeccionou a garrafa de aguardente contra a luz do sol, quebrou o lacre, e com um movimento seguro meteu-lhe o saca-rolhas:

- Os senhores vão-me dizer se têm bebido muita como esta.

Imitando o alemão, Sousa segurou o cálice às mãos ambas, agitou, aspirou:

- É da velha, claro.

- Velhíssima! Isto são garrafas, só já tenho muito poucas, que o meu avô trouxe da quinta que tinha no Douro. É pena que os rótulos não tenham data, para a gente saber. Mas calculo aí uns oitenta, oitenta e cinco anos.

- Bem - disse o alemão. - Forte. Muito bom aguardente.

Saborearam, fatigados do almoço, amodorrados pela aragem morna que espalhava um cheiro adocicado de figos e alfarroba. Dos casebres pegados ao muro da quinta vinha um ralho contido de mulheres, e o ruído dos camiões na subida chegava-lhes como um bordão, filtrado pelas árvores, monótono, longínquo, aumentando a sonolência da tarde.

Herr Donner bebeu o café, pousou cuidadosamente a xícara no pires, colocou-os sobre a mesita, pegando outra vez no cálice da aguardente antes de se sentar.

- A ferro estrada é lástima - disse ele sem encarar ninguém.

Sousa compreendeu a perplexidade do barão e traduziu:

- O comboio.

- Ah! O comboio!

Com aquele pasmo o barão "descobria" que o caminho de ferro, entre a casa e a praia, lhe cortava a propriedade em duas partes de menos préstimo.

- Mas há um projecto - afirmou ele um pouco desconcertado. - O governo quer desviá-lo para cima, paralelo à estrada. Há planos...

Ele próprio tinha assistido a reuniões, a conversas, mas isso tempos atrás, dois anos ou mais. Planos até muito detalha­dos. Lembrava-se tê-los visto, chegara mesmo a falar no caso com o engenheiro, um tal... Paciência! O nome não lhe ocorria agora.

Herr Donner tirou a agenda do bolso, pronto a anotar:

- Onde?

- Na Câmara. Na Câmara há planos, estudos feitos. Cabrita! Engenheiro Cabrita! Um sujeito de bigode. Eu sabia que me ia lembrar! Nessa altura até me disseram que se houvesse créditos era questão de meses. Têm o traçado, têm os cálculos, têm tudo.

- No Câmara?

- Na Câmara - corrigiu ele, involuntariamente.

O alemão tomou nota e o barão, que também se tinha sentado, levantou-se de novo, retomando a bengala como ponteiro:

 - Isto é um projecto enorme! Como eu dizia há pouco: dali... o comboio desaparece, é claro, desviam-no lá para o alto. Mas mesmo como agora está... Até ali... É coisa para quê? Dois hotéis? Três hotéis? Mais um porto de recreio, uma marina, como agora dizem, abrigada pela ria. Um casino. E vejam a praia! Com franqueza, digam-me se por essa costa há uma praia assim! Você, Sousa, você que conhece o Algarve tão bem como eu, diga lá... Há outra?

- Não há. É facto. E o doutor Donner também sabe que não há.

O barão voltou-se para eles, num crescer de entusiasmo:

- E o pinhal? E a casa? Isto data do século quinze, meus senhores! Século quinze, princípios do século dezasseis!

- Ach! Os Descobertos, muito bom! Vasco da Gama.

- Exactamente! São pedras históricas! Umas remodelaçõezitas, uns arranjos, umas latas de tinta, faz-se aqui um hotel de luxo! Coisa de primeira!

Sousa enxugou delicadamente a testa com o lenço:

- Mas a casa, senhor barão, tirante a fachada e este terraço, que é bonito, diga-se... Enfim, não sou competente, não sou arquitecto nem engenheiro... As paredes, os soalhos, o telhado, tudo isto teria de levar uma volta, seria até preciso fazer novo.

- É o que eu digo - atalhou o barão, impaciente. - É exactamente o que estou a dizer. Uns arranjos, umas limpezas. A fachada leva uma caiadela, mandam-se esfregar as colunas...

- Pois talvez, mas aos preços de hoje, senhor barão, uma obrita de nada são logo rios de dinheiro, milhares de contos. E ainda é preciso que haja quem faça, quem saiba fazer.

- Ora, Sousa!...Você!... Se os espanhóis pensassem assim, se não tivessem visto a coisa em grande, então hoje a Costa Brava, Torremolinos, Ibiza, Benidorm, os paradores, nada disso se tinha feito! Você tem andado por lá, sabe-o muito bem. E eu... - interrompeu-se ao ver que o alemão se levantava.

- Os servicios, por favor.

Atencioso, Sousa levantou-se também e explicou que era a retrete.

 

O barão acompanhou o hóspede, mas voltou logo, segurando a bengala pelo meio, esquecido da pose com que habitualmente caminhava apoiado nela. Quase a correr. Furioso.

- Você está contra, Sousa! Eu digo, você desdiz! Assim o gajo não vai querer negócio! Em vez de me ajudar você levanta dificuldades, fala em despesas, em milhares de contos!... E o comboio! Ora bolas! Faz-se uma ponte, arranjam-se cancelas!...

- Eu não falei no comboio, senhor barão. Ele é que falou.

- Mas você bem se pode pôr mais do meu lado, que raio! Dar uma ajuda! Mostrar as vantagens!

- Não adianta. Isto é homem de experiência, vê tudo, informa-se. Aposto que já andou por aí em segredo a espiolhar. Se quis vir é porque a coisa lhe interessa, pois doutro modo não vinha. Agora se vai comprar...

- Ó homem! Eu não tenho pressa em vender! Não me aperte e não vendo! Faça-me uma segunda hipoteca, espere mais uns meses... O valor dos terrenos sobe, todos os dias sobe.

- Impossível, senhor barão. Os terrenos... Sim, houve alturas. Hoje, infelizmente, com o dinheiro caro como está e os bancos desconfiados, a crise... As pessoas fingem que vai tudo bem, mas não é assim, não senhor. Estamos a caminhar a passos largos para a tragédia. Sou eu quem lho afirma, com a certeza de que me não engano: a passos largos! Muito largos! Nos últimos tempos tem-me acontecido ser obrigado a dizer não. Mesmo a amigos. Em circunstâncias que aqui há três, quatro meses atrás, eu não hesitaria a, enfim, apoiar, ficar de fiador, correr o risco de...

- Mas se a coisa se fizer, a venda, você além dos juros e da hipoteca ainda recebe comissão! Bem pode adoçar o homem, que raio!Ficar do meu lado! Ganhamos ambos!

Sousa entrelaçou os dedos, sem responder, e o barão, arrastando a bengala, foi vagarosamente até ao parapeito.

Trafulha! Um sujeito que em empréstimos, hipotecas, juros e sovinices, lhe tinha sugado o sangue. A fingir-se amigo e agora do lado do alemão, doutor Donner isto, doutor Donner aquilo, a acender-lhe o charuto, a ajudá-lo a sair do carro. Doutor uma merda! Chegando a Lisboa ia tirar informações, não se pasmaria se descobrisse que aquilo era tramóia ensaiada entre os dois para lhe apanharem a quinta ao desbarato. Mas se fosse havia de arranjar maneira de assentar ao senhor Sousa uma porrada de alto lá. Viesse depois com queixinhas e ai do meu negócio, ai dos meus filhos.

Alheado, perdido em cálculos - a Manuela queria ir a Paris, o alfaiate tinha escrito uma carta malcriada, o gerente do banco telefonava agora todos os dias, coisas assim... - quase não deu pela passagem do comboio, mas ao ver que alguns passageiros lhe acenavam voltou as costas, desabafando com um palavrão.

 

Pequenino e barrigudo, sempre em movimento, em viagens, em telefonemas, vestido a primor, Sousa inspirava confiança, ganhara uma reputação de serviçal e enriquecera a emprestar sobre penhores.

O que então havia  em Lisboa de fidalgos habituara-se a ir-lhe ao escritório desfazer-se discretamente de acções, jóias e propriedades, para acudir a aflições de fim de mês, letras protestadas, despesas com bodas e amantes, apertos de contas velhas. A sua amizade com o barão nascera quando, por causa de uma enrascadela com uma menor, precisara de dinheiro para calar a mãe da rapariga e lhe tinha feito a hipoteca de um prédiozito de três andares na Rua do Salitre. Para evitar o escândalo precisara de untar muita mão, e o Sousa, honra se lhe faça, fora útil, mexera relações, conseguiu abafar a coisa quando, por assim dizer, já estava em andamento no tribunal.

Simpatizaram, frequentaram-se, passaram a jantar no Tavares, no Grémio Literário. Foram a Madrid e Barcelona, havia o plano de realizarem uma grande viagem pela Europa e de mais tarde irem aos Estados Unidos. Depois tinha havido uma zanga entre ambos, uns anéis antigos que o barão lhe dera a empenhar e ele, sem aviso nem licença, vendera para saldar os juros atrasados doutra hipoteca.

Quando o soube correu ao escritório fora de si, desatou a insultá-lo:

- O senhor Sousa é um agiota, um judeuzinho sebento, um velhaco! Ouviu? Um velhaco!

- Senhor barão...

- Tenho amigos! O senhor vai ver! Tenho gente na minha família que assim que... Mal eu... E provas! Com provas!

- Senhor barão, por favor...

- Tenho provas! Mais! Tenho o direito por mim!

- Eu faço o possível por não prejudicar ninguém, senhor barão. Sempre que posso acudir, acudo. É a minha divisa. Mas também tenho família, obrigações, tenho as despesas, o pessoal. Às vezes sou obrigado a ser duro. Contra vontade, com muita pena.

- Desgraço-o! É eu abrir a boca e os meus amigos!... Ainda lhe digo outra coisa...

Sousa interrompeu-o: - Amigos? Que amigos, senhor barão? - e repentinamente violento, sarcástico: - Provas? Provas de quê? Das garotas que tem abandalhado? Das porcarias? Diga, se faz favor, provas de quê, meu caro senhor? De não pagar o que deve a tempo e horas? De passar a vida a intrujar?

Incrédulo e desnorteado, sem ar - nunca ninguém o atacara assim - o barão procurava a porta aos tropeções, tentando debalde escapar àquele dedo que o apontava.

Esbarrou contra uma estante, depois contra a mesinha baixa, e por fim, lívido, a tremer, encostou-se à parede à espera do golpe de misericórdia.

Gentilmente, mas com firmeza, Sousa veio agarrá-lo pelo braço, puxou o sofá, obrigou-o a sentar-se. E tirando os papéis da gaveta fez-lhe contas, mostrou recibos, explicou, deu-lhe a boa nova: os anéis, infelizmente, tinha sido obrigado a vendê-los, porque o banco não ia esperar mais tempo. Mas vendera bem, tão bem que, paga a papelada e os emolumentos, satisfeitos os juros, ainda havia saldo:

- E nada mau, senhor barão, nada mau.

Eram quarenta contos e pico que naquele momento lhe faziam jeito e o prestamista contou de um maço que tirara do cofre, a gracejar se os queria em notas de vinte.

Com o sorriso o ambiente desanuviou e Sousa, pelo telefone, pediu à secretária que trouxesse gelo e a garrafinha de uísque.

Mais tarde, na rua, em vez de se despedirem acabaram por ir jantar ao Gambrinus, ambos cheios de desculpas.

- São coisas do diabo, Sousa. Compreenda. Às vezes uma pessoa... Há ocasiões... A gente depois arrepende-se, mas na hora...

- Águas passadas, senhor barão. São coisas do diabo, realmente. Eu próprio devo confessar, reconheço que da minha parte...

- Sousa, confesso-o com toda a franqueza: excedi-me. Os amigos... Sempre o considerei e continuo a considerar um amigo. Tenho dado provas.

 

No correr do jantar já o incidente parecia remoto. Falaram de Badajoz, onde no dia antes houvera uma magnífica tourada. Falaram de Paris. Falaram do Parque Mayer e da revista do Variedades, onde a Manuela - a rapariga que agora mantinha - era corista.

Pagou a conta e insistiu para que Sousa o acompanhasse a uma boîte nova na Duque de Loulé, com atracções de primeira e um gerente amigo, o Pina, um rapaz alto, com uma cicatriz, que estivera anos à frente daquele bar que havia na Lapa.

- Recorda-se? Numa esquina, com um nome inglês?

O outro não se lembrava, para dizer a verdade ia pouco a bares, só de longe a longe.

- Mas o Pina, homem! O Jorge Pina, que foi amante da condessa de Avantos! Que jogou no Sporting!

Sousa continuava a acenar que não e quando o táxi os deixou à porta da boîte o barão precipitou-se à procura do gerente, fez as apresentações, achando extraordinário que não se conhecessem.

Foi nessa noite, depois do show, que Sousa mencionou pela primeira vez o alemão, um sujeito com grandes interesses na Argentina, no Brasil, nos Estados Unidos.

- Você lembra-se daquela nossa ideia? A viagem à América?

Recordava perfeitamente, até podia ser que conseguissem combinar uma coisa com a outra. Pois o alemão, um tal doutor Donner, vinha em breve a Portugal estudar o mercado, estava interes­sadíssimo em terrenos, sobretudo no Algarve.

- E eu tenho aquela quinta - disse o barão com um sorriso de quem adivinha o jogo.

- Precisamente. O senhor barão tem aquela bela quinta, e eu pensei: o rendimento é uma ninharia, mal dá para o juro da hipoteca que lhe fiz. Ora se pudéssemos chegar a acordo e interessar o homem...

- Não, querida, mais logo - sussurrou o barão a uma rapariga que lhe viera segredar qualquer coisa. E virado para o Sousa:

- Interessar o homem. Pois com certeza, meu amigo. Trate você disso. E agora se me dá licença, tenho de ir ali um bocadinho, para conversar.

 

O alemão finalmente voltou da retrete e antes de sair para o terraço ficou um instante a piscar os olhos, pôs uns óculos escuros, acendeu outro charuto. Beberam mais um cálice de aguardente, a falar de banalidades, do nome das plantas, comparando climas, até que o Sousa sugeriu que seria interessante se dessem um passeio pela praia:

- Lá de baixo vê-se melhor a casa, a quinta, e o doutor Donner fica com uma ideia.

O barão era avesso a caminhadas, sobretudo assim pelo calor, mas concordou e, fazendo das tripas coração, foi também. Eles, mais novos, tomaram logo a dianteira, metidos numa conversa que com certeza tinha a ver com o projecto, pois o Sousa de vez em quando fazia um gesto em direcção à encosta e o outro parava, voltava-se para observar.

Descalçaram-se onde começava o aral, arregaçaram as calças, o barão garantiu que podiam deixar ali os sapatos, ninguém roubava nada.

Sem uma palavra o alemão caminhou sozinho para a água, tirando baforadas do charuto, as calças puxadas até às coxas a mostrar umas pernas esguias e brancas, sem pêlo, femininas.

- Então? Em que ficamos?

- Ainda nada, senhor barão.

- Mas você veio por aí abaixo a falar.

- A prepará-lo. A ver se arranco alguma coisa.

- E que diz ele?

- Responde que sim, que bem, mas não diz nada.

- Nada?

- Absolutamente nada.

Seguiram em silêncio pela orla húmida em direcção ao alemão que, já longe, se tornara um ponto.

- Você tem cigarros?

- Não fumo, senhor barão.

- Julguei. Por causa do isqueiro.

- É para dar lume às pessoas. Nunca tinha reparado que o senhor barão também fumava!

- Já há anos que não. Mas sinto-me arrasado. São os nervos. Sempre sonhei vir acabar aqui os meus dias. Porque diga lá: isto é ou não é um paraíso? A paz, o sol, a água... Aquelas árvores! Se você não apertasse... Dê-me um bocadito mais de tempo e não preciso de vender! Pago a hipoteca, pago os juros, o resto.

- Não sou eu que aperto, senhor barão! É o banco! O banco exige! Para o banco seis meses são seis meses, nem mais um dia, nem mais uma hora! A gente atrasa-se? Eles caem logo com a machada em cima!

A intensidade do calor obrigara-os a despir os casacos e, enxugando o suor, tinham-se posto a caminhar pela beira da água, silenciosos. Na outra ponta da baía, a tremular e distante, adivinhava-se o casario esbranquiçado de Lagos, aqui e além a vela de um barco, uma traineira que regressava.

Ao redor, com o marulhar fraco das ondas, só se ouvia o alarido das gaivotas que pescavam na enchente. Em pequenos grupos, acocorados na areia, alguns pescadores remendavam as redes, ao reconhecer o barão tocavam as palas dos bonés num gesto amistoso.

- Não sei, Sousa. Com franqueza não sei - disse ele, a continuar um monólogo interior. - Criei-me aqui, gostava de envelhecer aqui. Não sei se estou na disposição de vender. Mesmo que o banco aperte, como você diz. Acho melhor desistir e amanhã telefono ao meu genro, o Mendonça, para ouvir a opinião dele. Custa-me, porque há anos que não nos falámos, mas já que você me obriga, lá terei de me desenrascar.

Sousa não respondeu, abrandou o passo como se a surpresa ou o esforço de conter-se lhe fossem uma sobrecarga. Depois parou, porque o barão tinha parado, a resmungar que não estava em idade de andar ao sol em caminhadas assim. E queria voltar para casa, tinha prometido à Manuela que lhe telefonava antes das quatro.

 

Estavam de novo sentados no terraço, onde as árvores faziam agora uma sombra agradável. Depois de telefonar à amante o barão voltara a juntar-se ao Sousa e, um pouco mais tarde, Donner apareceu ao cimo das escadas, torrado do sol, exausto, deixando-se cair na cadeira a bufar de alívio.

- Sede?

Ele acenou que sim, apontando o uísque no carrinho, e porque o gelo tinha derretido o barão fez sinal à criada para que trouxesse mais e copos. Beberam em silêncio, voltados para o mar, numa expectativa indolente. O ruído da estrada deixara de se ouvir, talvez pela mudança do vento, mas o ralho das mulheres nos casebres tinha-se tornado zaragata, ao berreiro seguiu-se o choro, um estalar de bofetadas, um tumulto histérico.

Incomodado, dizendo que ia mandar pôr cobro àquilo, o barão levantou-se e desapareceu dentro de casa.

 

O barulho vinha agora de mais perto, da cozinha da casa, ouvia-se uma voz esganiçada de mulher a gritar "Porco! Grande porco! Desgraçador!", momentos depois, a cambalear, o barão apareceu na ombreira, viram que abria umas poucas de vezes a boca antes de poder dizer:

- Sousa, pelo amor de Deus! Faça favor de vir aqui! Estão-me a acusar que me meti com uma garota e eu nem sequer a conheço!

Sousa acorreu solícito, a tempo de o agarrar pelo braço, o alemão amparou-o do outro lado e levaram-no atordoado para a sala, fizeram-no recostar num canapé. A criada trouxe água, mas ele, a tremer, não era capaz de segurar o copo, foi ainda Sousa que lho chegou aos lábios e depois, com o próprio lenço, enxugou as pingas que tinham escorrido para o casaco.

- Nunca vi a garota! Essa gente vive aí por caridade! - parecia falar para si próprio, no tom queixoso de quem sofre uma injustiça e se vê só.

- É não se apoquentar, senhor barão.

- Nem sequer pagam renda! Damos-lhe a água, levam os restos cá de casa...

Mais tarde, quando finalmente teve forças para se levantar e foi do canapé para o sofá, Sousa disse que estavam a ser horas de se porem a caminho. O avião do doutor Donner saía de manhã cedo e até Lisboa, com aquelas curvas todas, era um estiraço.

O velho não pôde ocultar o sobressalto:

- Mas então você vai assim sem nada resolvido? Sem discutirmos?

- Peço imensa desculpa. O senhor barão sabe: estou sempre às ordens. Mas não sou mais que intermediário. O comprador, o eventual comprador... -  e apontava o alemão que se tinha afastado discretamente para o terraço.

- Que me faça uma proposta!

- Acho que não faz. Casos como este - com um inclinar da cabeça indicou os casebres, onde os gritos e os insultos recomeçavam - deixam má impressão, as pessoas não querem encrencas. Tenho dito ao senhor barão dezenas de vezes: largue as garotas, leve uma vida mais... mais sossegada. Infelizmente...

- Eu nem a conheço, homem!

- Pode muito bem ser. Mas uma queixa no tribunal, um advogado esperto a vasculhar... Vão-se rios de dinheiro. E não me parece que o senhor barão esteja em condições de, enfim... Com os prazos a vencer-se, o banco a apertar...

- Uma segunda hipoteca?

- Impossível. Totalmente impossível.

A criada apareceu a dizer que chamavam o senhor barão ao telefone, uma senhora que não queria dizer o nome, e ele levantou-se a custo, foi atrás da rapariga num passo arrasta­do, mais firme na bengala do que nas pernas.

Com um aceno o alemão chamou Sousa para fora:

- Quanto é que você pagou à mulher pela gritaria?

- Dez contos.

- O que dá isso em marcos?

- Duzentos e dez, doze. Coisa assim.

- Não é caro - disse ele sorrindo, a proximar o charuto do isqueiro que o outro lhe estendia. - Não é nada caro.

- De facto não é. E ajuda.

O alemão ergueu o pulso a olhar para o relógio:

 - Vamos embora?

- Acho que é melhor esperarmos um bocadito.

                                                                      *  *  *

in Os lindos braços da Júlia da farmácia - Quetzal 2011