quarta-feira, abril 7

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"Devido talvez à longa ausência, quando cheguei surpreendeu-me, quase diria que me assaltou, o cheiro da terra transmontana, o odor que se me deve ter entranhado à nascença e agora aspiro com a satisfação de viciado a quem faltou a droga. Há aí retalhos de memória e alguma fantasia, pois desapareceram os montes de estrume a fumegar, não se vêem cagalhetas nem bosta, nenhum forno coze pão. todavia, sem que os chame, esses cheiros antigos vêm de mistura com os de resina e terra seca, dos eucaliptos, das encostas que são mares de esteva, giesta, urze e rosmaninho. Para mim continua no ar o relento de terra lavrada, do fumo acre de lenha a arder, mosto, figos, maçãs podres, bedum, o calor cheiroso das vinhas ao fim da tarde, o das pedras torradas pelo sol de agosto. Ontem, ao rever o lugarejo onde nasci, desabitado há vidas e que dentro em pouco se afundará na albufeira da barragem do Sabor, mais do que serem vivas as recordações, todas me chegaram acompanhadas de cheiros: o de pólvora na roupa de meu Pai, do soro do leite nas mãos da Felisbela a fazer queijo, do sabão de potassa, o das chouriças a defumar.

Há muito que tudo ali é abandono, fim, em parte nenhuma vi, nem poderia ver, candeeiros de petróleo ou lampiões de azeite, botas ensebadas, feno, a palha húmida, a urze repisada do mijo das bestas para fazer estrume, mas a cada porta de casebre, nos muros arruinados, no que ainda está em pé do que foi a nossa casa, por toda a parte me acompanhou, penetrante, a memória desses cheiros, como se por instantes fosse devolvida a parte de mim que há muito cientemente descartei.

A história alheia pode ser agradável leitura, à leitura da minha só me dou quando como agora as circunstâncias obrigam, pois me faz encarar o que prefiro esquecer e leva a juízos  que, sei-o de antemão, apenas servem para tornar mais espes sa a carapaça com que me guardo dos outros. Não é caso de que vá alargar-me em confidências ou detalhes, pois nem os factos são sempre como se contam ou o que parecem, e dentro da família, nas relações que mantemos, o que sentimos e mostramos ou não, as palavras que nos saem da boca, tudo é sujeito a incompreensíveis mudanças. A realidade de hoje vemo-la amanhã como tonta fantasia, mostra-se de pechisbeque o que pareceu genuíno. Talvez parte da tragédia da vida se deva a que nenhum artista iguala o tempo no mudar de ângulos e perspectivas, no fundir dos coloridos, nenhum como ele nos leva por tão enganosos bastidores ou cria máscaras de perfeição igual.

Foi surpresa encontrar o Meças no café, e sorte que ele tenha passado sem me reconhecer, pois não parecia em maré de ouvir, nem eu decidi ainda qual a ponta por onde hei-de pegar para resolver o que a ambos diz respeito, mas já só a ele afecta. A mim, passado o choque, sobrou-me tempo para atingir uma quase indiferença, foi como se visse peças desirmanadas dum puzzle que, julgara eu, não pertenciam todas ao mesmo tabuleiro, encaixar-se nele pela arte mágica de que só a vida tem o segredo.

Há muito deixei de me pôr interrogações inúteis. Consegui libertar-me de culpas que supunha minhas, aquelas de que os pais, inconscientemente ou não, se mostram tão capazes de assacar aos filhos e nestes deixam marca para a vida."

 

In O Meças