A propósito do circo de ontem
recordo que noutra altura – Junho de 1995 – encontrei outro, também no limiar
da pobreza, e desse encontro resultou este texto publicado no jornal de Rotterdam NRC
Handelsblad e depois em Mazagran.
"Prezada Senhora,
Antes de começar esta, nunca eu
me tinha dado conta de que, por vezes, se escrevem cartas com intenção igual à
de quem atira ao mar mensagens numa garrafa. Há, contudo, certa diferença entre
esse gesto consagrado pela literatura romântica e a carta que agora lhe mando.
Enquanto aquele que entrega às
ondas o seu desespero ou a sua nostalgia confia em que a sorte lhe encontre
algures um destinatário, eu tenho uma vaga ideia de quem a senhora é, sei em
que cidade mora, conheço mesmo alguns detalhes da sua vida particular. Mas
faltam-me aqueles dados – o nome, por exemplo, a morada – que tornariam
possível que eu recorresse ao correio
ou ao telefone, em vez de me valer
desta forma pública de comunicação.
As coisas, porém, raro são como
a gente as deseja, e não há outro remédio senão aceitarmos os pequenos contratempos
que nos vêm pela porta.
Como preâmbulo já é longo e
filosófico que baste. Agora a razão deste escrever. Tempos atrás encontrava-me
eu uma tarde de passagem por Vila Flor, em Portugal, povoado grande, perdido
nas serras da minha província. Com o tempo ensolarado e ameno, sentei-me numa
esplanada fronteira ao largo onde se realiza a feira. Um grupo de roulottes
estava aí disposto em torno do amplo estrado, sobre o qual alguns homens
se atarefavam a erguer a tenda de um circo.
A minha atenção focou-se num
jovem casal, visivelmente estrangeiro, que saíra de uma das roulottes
e veio sentar-se a uma mesa junto da minha.
Ouvindo-os falar neerlandês, e
dando-me conta de que a sua conversa prenunciava intimidades, pareceu-me
correcto informá-los de que, embora involuntariamente, os meus ouvidos seriam
indiscretos.
Eles riram, acharam curiosa a
coincidência de haver quem os compreendesse naquele fim-do-mundo, e abancaram comigo.
Bebemos cerveja, trocámos confidências, foi assim que vim a saber que eram eles
os acrobatas que os cartazes do circo anunciavam. Bert e Bertha. Os Bertini.
Nome de artistas, claro – disse o rapaz.
Os Bertini de Breda! –
acrescentou a rapariga, com a teatralidade de quem apresenta um número.
Contaram-me depois que há quatro
anos, desde que ela fugiu de casa para o acompanhar, trabalham juntos no
trapézio. Primeiro em Itália, mais tarde na Grécia, a seguir em
Portugal. Só que agora, por
causa da gravidez, ela vai ter de parar.
Não me informaram das razões,
mas juraram que na Holanda nunca mais ninguém os apanha. E que a senhora pode perder
a esperança de os voltar a ver.
Achei triste. Mas quando nos
despedimos disseram que, já que eu escrevia no jornal, se quisesse lhe poderia
mandar lembranças de ambos. Lembranças também a todos os amigos de
Breda. A Marilu, Jan, Cynthia e
também ao Peter, de Rotterdam. E que os médicos disseram que o bebé vai ser uma
menina.
Mais não tenho para lhe contar,
mas talvez lhe interesse saber que o circo onde trabalham se chama Circo Amazónia."