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APRESENTAÇÃO DE AS PRIMEIRAS COISAS, ROMANCE DE BRUNO VIEIRA AMARAL – FNAC CHIADO
14.10.2013
Boa-tarde.
Porque me
conheço há muitos anos, o ver-me numa cerimónia para a qual me falta
experiência, é bico-de-obra. E as quase quatro décadas que passei no ensino, portanto
a falar para um público, em vez de ajudar, apenas aumentam o meu desconforto.
Numa sala
de aula, ou num anfiteatro cheio de estudantes, a minha posição era de
autoridade. Não vou exagerar, dizendo que me sinto aqui como o cristão atirado às
feras, mas devo conceder que há lugares e situações em que sinto mais alívio.
É que a
voz pode falhar, os óculos podem cair, às vezes um gesto resulta em caricatura,
há o temor de não corresponder à expectativa. Levo também em conta a
probabilidade de que, mesmo involuntariamente, alguém entre os presentes me
encare com aquele modo de quem não espera nada de bom. Ou que sorria, e eu,
pessimista por natureza, interprete esse sorriso como uma advertência e comece a gaguejar.
Para até
certo ponto diminuir os percalços decidi valer-me da experiência das mulheres
de virtude, dos políticos, dos amantes, dos colibris e das religiões,
escondendo a minha insegurança atrás do ritual.
Sendo uma
forma de baptismo, a apresentação dum livro assemelha-se-lhe, pelo que, de modo
a acatar os mandamentos da cerimónia, em contraponto à sobrepeliz e à estola do
sacerdote, vesti eu fato, pus gravata.
E assim
paramentado, espera-se que de seguida augure bem ao recém-nascido, exalte as
qualidades e o talento do progenitor, lhe assegure estrondoso êxito, profetize que
de Coimbra à Guarda, de Bragança a Portimão, se irá falar de Bruno Vieira
Amaral como a grande promessa da nossa literatura.
Aqui
chegados, é provável que um ou outro dos presentes se diga que me vê a fazer o
clássico frete.
Frete não
é, sim consequência de uma situação mafiosa. Ligado pelo juramento do sangue à
família Quetzal, amigo da Lúcia, do Francisco, do Bruno, das moças e moços que,
para os lados de Benfica, mourejam a produzir livros, estou a cumprir os deveres
de um soldado da Máfia.
Deixem
que pare o gracejo e desminta o que disse, não vá algum espírito doentio
tomar-me à letra.
Um intróito
picaresco pode, às vezes, servir para desanuviar um ambiente, esconder uma insegurança.
Neste caso é o disfarce de uma desculpa.
Conhecendo
as minhas limitações, eu devia ter ouvido o bom-senso e recusado a incumbência,
pois nem de longe posso pedir meças aos mandarins da crítica literária, que a esses
basta uma linha para escancarar o fosso que os separa do amador.
Também encontram
sempre o floreado que realça a qualidade de uma obra, são enciclopédicos no conhecimento, prontos na referência
aos clássicos.
Além
disso manejam um vocabulário que, inacessível ao comum, torna difícil
compreender se estão a separar o trigo do joio, a meter tudo no mesmo saco, ou
a rir da ignorância alheia.
É facto
que me senti tocado de emoção quando li o romance do Bruno, e também gostaria
de sobre ele dizer coisas profundas, mas falta-me ciência. O que tenho de sobra
é inveja. Pagaria bom dinheiro para, sobre As
Primeiras Coisas, ser capaz de escrever frases deste género: "A escrita não vem aqui depois do
vivido, enquanto representação de uma anterioridade… É um modo, uma declinação
– do mal, do apodrecimento, do estranho… Trata-se de desconjuntar a sintaxe, de
fazer dela um instrumento que tortura, destrói, enlouquece."
Suspeitem
que ironizo, riam se quiserem, mas é assim que vale a pena.
Por azar
não me chega a cabeça para essa concisa eloquência, nem sequer para outra de
menor calibre. Mas uma vergonhosa confissão devo fazer: estive tentado a
plagiar. Só por um triz me salvei de dizer que, em As Primeiras Coisas, "Não
se trata propriamente de uma metaliteratura ou de uma inclinação textualista,
mas uma experiência e um saber (do mal, da morte, da estranheza, da
decomposição, dos restos, da ruína) que só podem ser ditos sob determinadas
condições da palavra literária."
E paro as
citações, estas chegam para que se avalie a desvantagem, melhor dizendo o
prejuízo, que o meu destrambelhado apadrinhamento acarreta ao Bruno.
Acerca da
escrita de As Primeiras Coisas, já
José Mário Silva referiu a "altíssima qualidade da prosa", superlativo de que, avisadamente, o crítico do
Expresso não é pródigo, embora também
não devam ser muitas as oportunidades de o empregar .
Todavia,
devo dizer que não apreciei. Senti-me roubado, pois elogio semelhante já eu tinha feito ao autor, logo que terminara
a leitura do manuscrito.
Mas é
assim a vida, há sempre quem nos corte o passo.
O romance
do Bruno merecia, na verdade, uma apresentação em que, de par com a análise
doutoral, se esmiuçasse a subtileza com que ele cria personagens, expõe
sentimentos, desenvolve cenas, faz o leitor ressentir o incómodo do confronto
com as próprias faltas e cobardias, as ocasiões em que fechamos os olhos em
busca de descanso para a alma.
Mas a
imparcialidade obriga a que também se lhe apontem falhas. O ambiente do romance
desconcerta. A narrativa poderia, como é moda, e por certo ganhava em atractivo,
se tivesse por pano de fundo a Mongólia, o Japão ou a Groenlândia, oferecendo
assim, juntamente com o enredo, a mais-valia do exótico.
Abria-lhe
também a ocasião de extrapolar para o sentimento religioso, as visões que
ocorrem nos lugares mágicos, para ascender àqueles estados de espiritualidade
que realçam a comunhão de sentimentos com os leitores e estes tanto apreciam.
Mas jovem,
e provavelmente mal aconselhado, Bruno Vieira Amaral, pontapeia o leitor para a
Margem Esquerda, a Outra Banda de antigamente. E estou certo que isso vai desagradar,
talvez até lhe cause um imerecido dano.
Porque no
Chiado, na Linha, nas Avenidas Novas - onde habita o grosso dos que lêem e dos
que compram - o Bairro Amélia valerá apenas como um insólito longe de que o
Tejo os separa e a névoa matinal agradavelmente oculta.
É para
esse soturno território, na aparência tão próximo, na realidade mais afastado
do que a província transmontana, que o Bruno nos força a olhar.
Aí se
movimenta uma gente de extremos, social, económica e sentimentalmente, se não
expulsa da civitas, de certeza empurrada
para o extramuros, que é a versão moderna e legal do gueto.
Entrei no
livro com algum incómodo, perturbado pelas reacções dos personagens, os seus
medos, a para mim incompreensível violência, a estranha lógica das atitudes.
Mas
graças ao métier do narrador e, sim,
à "altíssima qualidade da prosa", entranhei-me no ambiente, vivi com
eles, tornei-me um deles, antes de ter chegado
ao Epílogo mais de uma vez se me
apertou a garganta.
Não só
pela força da narrativa, pela sua humanidade, a gama de sentimentos, o tom
original, o elegante e cuidado uso da nossa língua, mas pela emoção de,
terminada a leitura, poder afirmar que acabava de ler um grande romance.
Que
poderia dizê-lo com convicção e, honestamente, parafrasear o que Saramago, meio
século atrás, escreveu sobre o primeiro romance de um outro noviço: "Não
se espera e acontece."
Numa vida
longa em anos e decepções literárias, há muito deixei de acreditar e esperar. Todavia,
à maneira das crianças e dos que jogam na roleta, mantenho a ponta de esperança
incoerente que me leva a ler aquela sumidade, o jovem que me dizem promissor, a
dama que no céu das Letras brilha como a estrela do norte, mesmo o bobo que
confunde a arte de escrever com as tropelias do palhaço.
Leio,
desanimo, já nem sequer encolho os ombros.
Para mal
de nós todos, a literatura portuguesa contemporânea é muito de modas, aborrece
histórias, enredos e testemunhos, quer estados de alma, problemas de identidade,
do ser, exames detalhados do umbigo.
Os seus
cultores ouviram falar da riqueza do vocabulário e da melodia da prosa, mas essas
antigualhas não têm cabimento no universo dinâmico dos Iphones, apps e Rock 'n Roll.
Tomando
por certezas os próprios desejos e os malabarismos da psicologia de algibeira,
concluem eles que, num mundo que supõem a deslizar na superficialidade, é
desnecessário ser, basta parecer.
A
precisão da sintaxe, o demorado carpinteirar das ideias e do enredo, a procura
de ritmo e melodia, tudo isso lhes parece esbanjar tempo, certos de que, o que
em catadupa lhes sai da cabecinha, tem mais autenticidade, espelha melhor o mundo
em que vivemos.
Fernando
Pessoa escreveu no Livro do Desassossego que "A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera de brutalidade e
de indiferença pelas artes, onde um medidor da forma não tem refúgio. Dói mais,
cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais
doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis e, portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidadosa de regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."
Olhando em volta é impossível contradizer o poeta.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis e, portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidadosa de regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos."
Olhando em volta é impossível contradizer o poeta.
Desconhecendo
a necessidade de regras, e ignorante de que a estética existe, nas últimas
décadas o populus deitou-se a escrever, ciente de que os balbucios do
ego são uma expressão de arte. Que dos espasmos da bebedeira, da anorexia, do
incesto, da neurose, do amor aos cães, da cirurgia plástica, das sardinhas de
escabeche - de tudo, afinal - mesmo os simples de espírito podem tirar um livro
ou uma obra de arte. E os editores editam, os museus compram, o povo admira e
regozija-se consigo próprio.
Proust e Joyce, tendo aberto com o seu génio, e a "corrente de consciência", um inesperado caminho aos sem-talento, são dos grandes da literatura, mas podem também contar-se entre os seus verdadeiros "malfeitores." Freud faz-lhes companhia, e Marx, que ajudou a criar as ilusões que sabemos, completa o quarteto.
Proust e Joyce, tendo aberto com o seu génio, e a "corrente de consciência", um inesperado caminho aos sem-talento, são dos grandes da literatura, mas podem também contar-se entre os seus verdadeiros "malfeitores." Freud faz-lhes companhia, e Marx, que ajudou a criar as ilusões que sabemos, completa o quarteto.
Voltando
a As Primeiras Coisas: embargou-se-me
a garganta, como já disse. Não só por aquele final de antologia, mas pela certeza
de que tinha lido obra moderna no melhor dos sentidos. E obra de primeira. Respeitosa
dos cuidados que a língua merece, original na criação, grande na sua humanidade,
espectacular na sarabanda de episódios, personagens e enredos.
Tal como
Saramago, eu também não esperava, mas a minha satisfação é grande por ver que
aconteceu, e porque, finalmente, me foi dado ler um romance em que descubro a
continuação da linha do melhor e mais valioso da nossa literatura.
Nada de pequices
de suposta vanguarda, elucubrações pedantes, arrebiques, linguagem falseada, arrebatamentos
em Katamandu, sol poente nas Maldivas. Nada disso. Simplesmente dura, crua, genuína
e pesada, aquela existência a que, por convenção, os que vivem em conforto chamam
marginal.
Não se
vai lá de visita, nem com as chamadas boas maneiras: anda-se por ali aos
empurrões, aos trambolhões, aos vómitos, dando socos, gargalhadas incoerentes,
sentindo medo, sendo enganado pela neutralidade de capítulos como o intitulado
"Gastronomia", não evitando que o Bairro Amélia profundamente se nos
entranhe, transforme e desoriente.
Mais de
uma vez perdi o fôlego, como se estivesse a revisitar os momentos
cinematográficos mais contundentes de Buñuel, Fellini, Scuola ou Tarantino.
Em As Primeiras Coisas quase todos os actores
têm nome e são inesquecíveis, mas entre eles, Lito, o Rei-Sol negro, o
Lito-Capone, merece destaque.
A
história está na página 179. O leitor assusta-se, depois é-lhe dada uma ténue esperança
de happy end, de salvamento, e vai
por ali fora, sente a tensão crescer, a violência aumentar, uma fúria de
tempestade. Mas nada o prepara para a cena com que termina. Cena estranha,
poderosa, em que a humilhação, o medo, a violência, e uma peculiar forma de
cortesia e loucura se dão as mãos.
Espero
que acreditem se lhes disser que a literatura é a minha vida. Que nos juízos que
sobre ela faço não entram amizades nem gentilezas, muito menos favores. Dependências
não conheço, dívidas não tenho, nem submissões. Também podem estar certos de
que sou avaro de qualificativos, e não me arrisco a fazê-los à ligeira.
Pesando as
palavras, seguro de que não exagero, é invulgar a satisfação que tenho em poder
dizer que Bruno Vieira Amaral é um grande escritor, e As Primeiras Coisas um grande livro.
Creio que o ritual manda que, simbolicamente, eu
ofereça agora ao autor o primeiro exemplar da sua obra. Mas peço ao Henrique
Raposo que seja ele a fazê-lo, dando-me assim oportunidade para assinalar a amizade
que os une e não desmerece da de Cosme e Damião.
Muito
obrigado.