quinta-feira, agosto 12

Nunca digas, desta água não beberei

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Vidas atrás escrevi um guia de Portugal que, entre algumas boas qualidades, tinha a má de ser relativamente pesado, e daí incómodo para quem com ele ia de viagem.

Aproveitando o acaso de um encontro no supermercado, uma leitora anónima desfez-se em elogios ao meu trabalho, e já ia nas despedidas quando lhe ocorreu queixar-se do quilo e pico do calhamaço.

Sorri a concordar, mas logo se me foi a boa disposição quando ela me pôs ao corrente da solução que encontrara para o desconforto do peso: ia simplesmente cortando as folhas correspondentes aos locais que tencionava visitar.

Lá mantive o sorriso, e até acrescentei que achava engenhosa a ideia, mas por dentro senti-me mais que ofendido. A pouca vergonha! Aquilo era o meu livro! Aquilo eram quase quatro anos de trabalho, muitos milhares de quilómetros pelas más estradas dos anos 80, um estômago danificado por desagradáveis almoços, a coluna entortada por péssimos colchões. E atrevia-se ela ao sacrilégio de lhe arrancar-lhe as folhas!


Desde há um tempo que de várias partes me moem a paciência com Bolaño. Que “ o 2666 é um livro e tanto”, que passei há muito a idade de ter opiniões infundadas, que é mesmo o primeiro grande romance deste século, etc. De modo que ontem fui à livraria, comprei a tradução holandesa e de volta a casa, estranhando que as forças me faltassem, pus o livro na balança. Um quilo, quinhentas e cinquenta gramas; mil e setenta páginas; seis centímetros de lombada.

Ora acontece que leitura a sério, para mim, é feita na cama e no silêncio da noite, o que com um livro destes não é fazível nem confortável, nem aconselhável, pois por menos se arranja uma hérnia no pescoço. O calhamaço necessita do apoio de uma mesa, e eu não gosto de ler livros à mesa, além de que logo me doem as costas.

Foi então que me veio a recordação da leitora anónima e a de uma caixa com bisturis que comprei com outra finalidade e agora faz jeito.

Já pedi desculpa a Bolaño, daqui a nada vou cortar o “2666” nas cinco partes que o compõem.