terça-feira, dezembro 1

O Primeiro de Dezembro de 1944 (*)


A guerra assombrava então o mundo, mas nós, na tarde do 1º de Dezembro de 1944, vestidos com o uniforme verde e castanho da Mocidade Portuguesa, desfilávamos a cantar alegremente pelas ruas do Porto. Na Praça da Liberdade, onde com discursos e foguetes se iria comemorar a vitória alcançada sobre os espanhóis três séculos atrás, tinha sido erguido um estrado adornado de tapeçarias, guirlandas e escudos. Aí, sentados em cadeirões, generais e almirantes em uniforme de gala, dignitários de casaca, cónegos, bispos, senhoras agasalhadas em peles, aguardavam o começo das festividades. Desfraldados alegremente ao vento, por toda a parte se viam estandartes, guiões, pendões, flâmulas, bandeiras, galhardetes, e a praça ia-se lentamente enchendo de regimentos de soldados, de guarda-republicanos a cavalo, marinheiros, patrulhas da Polícia com majestosas Harley-Davidsons, ranchos folclóricos, pensionistas de asilos, órfãos da Casa Pia.

As janelas, as varandas, os passeios, estavam apinhados de gente, no ar pairava aquela alegria que costuma acompanhar o regozijo das vitórias. Nós, pequenos, tínhamos ido formar entre as tropas e a tribuna. Eu, mais pequeno que a maioria, estava na primeira fila.

Como éramos uns quinhentos demorámos a alinhar, mas quando as fileiras lhe pareceram razoavelmente direitas, o nosso comandante, um maricas com tanta brilhantina que vista de longe a sua cabeleira parecia um capacete, deu voz de "Sentido!" e ergueu os braços, o sinal para que mais uma vez cantássemos o hino da Mocidade.


"Lá vamos, cantando e rindo,

Levados, levados sim,

Pela voz do som tremendo,

Das tubas, o clangor sem fim.

Lá vamos, que o sonho é lindo,

Torres e torres erguendo,

Rasgões, clareiras abrindo.

Alva da luz imortal,

Roxas trevas despedindo,

Doira o céu de Portugal."


Agora, na calma do meu quarto de trabalho, soa em tais palavras um ridículo arcaico, mas cantadas a quatro vozes na Praça da Liberdade, com todo aquele aparato de bandeiras, uniformes, medalhas, trombetas reluzentes e armamento, causavam na espinha o arrepio das grandes emoções.

A banda da Marinha atacou em seguida os primeiros compassos do hino nacional e, como duma só garganta, da massa de povo e tropa levantou-se o terrível bramido da estrofe patriótica que, nos últimos versos, incita os cidadãos a deixar-se chacinar:


"Contra os canhões

Marchar! Marchar!"


Novo arrepio. Gritos e palmas de aplauso. Toque de clarim para o minuto de silêncio em homenagem aos mortos de 1640. Outra vez palmas, outra vez gritos.

Idoso, carregado de medalhas, um dos generais da tribuna aproximou-se então do microfone, pôs os óculos, agarrou as folhas de papel que um ajudante lhe estendia e, numa voz habituada a fazer-se ouvir nas paradas, atroou os ares com ditirambos à glória do nosso passado, à paz do nosso presente, ao imenso brilho que o futuro traria ao país. Tudo isso, segundo ele, graças a Salazar, o génio que simultaneamente nos protegia dos horrores da guerra e assustava de tal modo o inimigo que jamais teríamos de repetir os feitos heróicos da guerra pela nossa independência.

Ao longo discurso desse general, sucedeu outro general com outro longo discurso, depois um almirante, depois uma senhora, um dignitário de casaca e cartola, outro general, outra senhora, um cónego...

Tremendo de frio e ali há tanto tempo como que especado, não tardei a cansar-me de os ouvir. Contudo, defronte da tribuna, e tão perto dos dignitários que não somente lhes via perfeitamente as feições, mas podia mesmo distinguir pequenos detalhes - a verruga dum, a curiosa forma dos anéis doutro - eu não tinha qualquer possibilidade de sair da formatura e escapar-me para casa, como era meu desejo. Além disso o maricas vigiava para que nos mantivéssemos alinhados e erectos.

Os oradores continuavam, monótonos, repisando os mesmos temas, e ao meu cansaço sucedeu uma alarmante pressão da bexiga e um princípio de tontura. Custasse o que custasse eu não ia dar-me em espectáculo, desfalecer, ser levado numa maca e, na boca dos outros, ficar para a vida inteira "O Fraquezas".

O expediente que então me ocorreu, e salvou, poderá considerar-se infantil, mas satisfaz por certo alguma exigência profunda e oculta do meu ser, pois com o passar dos anos tornou-se um indestrutível hábito.

O general que nesse momento falava era um homem alto, ossudo, de orelhas grandes e descoladas. Despi-lhe as calças. Tirei-lhe a gravata. Abri-lhe a camisa. Arregacei-lhe as mangas. "Porque um regime justo como o nosso, que põe em prática os altos princípios da doutrina cristã..." Revirei-lhe o boné. "A palavra de Cristo e os valores do sistema corporativo são as colunas que mantêm..." Pu-lo a saltitar. Meti-lhe um girassol na mão. Seguiu-se-lhe o presidente da Câmara e com pequenas variantes apliquei-lhe tratamento igual. A uma matrona de uniforme e muitas medalhas, idem. Retirei os paramentos ao bispo. O almirante ficou de calção curto. Vesti de soubrette o coronel de cara dura.

Entretido nesse teatro e já esquecido da tontura e do cansaço, só dei conta que o comandante se viera postar ao meu lado quando ele ciciou com a sua vozinha aflautada:

- Do que é que estás a rir, ó palerma?

Por não responder apanhei três dias de suspensão às aulas, averbados na caderneta escolar, ferrete de rebeldia e primeiro passo no mau caminho das "ideias subversivas".

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(*) Este texto é o começo de um conto intitulado Um Mau Hábito – in O Milhão – J. Rentes de Carvalho; Editorial Escritor, Lisboa, 1999.

A fotografia é de Life Magazine, sem data, provavelmente dos anos 50.