Inverno de 44. Um quarto muito frio. Uma braseira. Uma escrivaninha minúscula e nela um rádio Philco. Ligado. À espera da emissão portuguesa de Rádio Moscovo que começa às nove.
Tenho catorze anos e todas as noites tremo de medo. Meu pai nunca está e à minha mãe essas coisas não interessam, mas o nosso vizinho, o senhor Pina, é inspector da PIDE e olha-me sempre de lado.
O relógio bate as nove. Deve andar adiantado, porque não oiço nada. Aumento o som. Um rufar de tambores. A música como que me explode nos ouvidos. Rodo o botão, ponho-o baixinho. Desconheço as palavras, mas canto também, num sussurro. A guerra há-de acabar e no mundo nunca mais haverá pobres, nem oprimidos. Não sei se o hino russo diz isso, mas pouco importa, dá a impressão que sim. Se não fosse o senhor Pina cantava alto.