A construção do primeiro paço da Glória perde-se no tempo em que os galeões voltavam do Oriente carregados de ouro e pimenta. Do dia para a noite os fidalgos passavam de remediados a nababos, e mandar fazer um paço condigno com as suas novas posses era o menos que se esperava deles.
D. Geraldo Coutinho de Lima, senhor de Cochim - a primeira feitoria europeia da Índia - e proprietário de duas naus, tinha recebido as terras da Glória por doação de D. Manuel I em 1515, começara a casa, mas viria a falecer com ela ainda nas paredes.
O seu primogénito, D. Fernando, seguiu as pegadas do pai. A ele se deve que em Cochim se tenha feito a primeira impresão de livros na Índia. Infelizmente, no dia em que os carpinteiros terminavam o arcabouço do telhado, fulminou-o um ataque, dando corpo à lenda de que daí em diante todos os donos da Glória morreriam sem herdeiros.
Reza a crónica que essa praga lhe fora rogada por um judeu de Cochim, a quem ele tinha enganado num negócio, e que até ao fim do mundo ela cairia sobre todos os que tocassem a propriedade.
O paço e os terrenos passaram então para um D. Afonso, parente afastado. Esse, para escapar ao mau destino, tinha-se dado ao trabalho de, por volta de 1635, viajar para Cochim, na certeza de que lhe não seria difícil encontrar um judeu no meio dos indianos e da meia centena de portugueses que lá haveria. Para sua surpresa, porém, nessa altura já os holandeses tinham conquistado a feitoria, e nela não havia duas ou três famílias judias, mas milhares, a maior comunidade judaica da Índia, formada ali desde o século IV da era cristã.
Percorrendo o labirinto de ruas, seguindo pelos ribeiros e lagoas de Cochim, procurando por entre os templos indianos, as mesquitas e as igrejas, D. Afonso acabou por descobrir a sinagoga. Mas do homem que lhe interessava, nem rasto.
Passado ano e pico voltara para a Europa num galeão holandês, desembarcando em Vlissingen, onde pouco depois viria a falecer do tifo. Sem herdeiros.
Deixadas ao abandono durante anos, as terras da Glória eram um matagal, e do paço inacabado, que fora derruindo aos poucos, restavam as cantarias. Na segunda metade do século 18, a grande praga de míldio que tinha assolado os vinhedos franceses, contribuíra para uma súbita prosperidade das vinhas do Minho, e dessa altura data a construção do paço actual.
Porém, sobre quem o mandou fazer, ou quando, não há documentos. Fala-se de um nobre excêntrico, que por não ter mulher nem parentes, mantinha naquele deserto um grupo de músicos para lhe alegrar as refeições. Fala-se de um pai louco, que encarcerava as filhas num subterrâneo, por temer que elas o desonrassem. Conta-se de um galego, que fugira para ali por ter enriquecido, depois de ter feito com o diabo um pacto que o obrigava a comer gente.
Ao certo nada se sabe, a não ser que a praga do judeu ainda surtia efeito, pois de novo ficaram as terras ao abandono e o solar meio arruinado.
Comprou-o nessa altura um emigrante, que tinha voltado velho e cansado de Manaus, onde enriquecera durante o boom da borracha. Sendo de opinião que, para a sua própria felicidade, ninguém precisa mais do que pão para a boca e uma cama para dormir, o homem mandara levantar só parte do que tinha caído. Para conforto dos seus oitenta anos juntara-se com uma rapariga de dezoito, filha do caseiro.
Como era de esperar, a união não deu fruto. No começo do século XX, o novamente abandonado e meio derruído edifício passou para as mãos do filho de um lavrador abastado de Ponte de Lima. O rapaz, que tinha inclinações românticas, e nenhuma intenção de mourejar no amanho da terra, dedicou-se uns tempos à pintura. Mas pelos jeitos depressa se aborreceu da arte. Em 1907 decidiu partir para Filadélfia, onde o seu charme conquistou o coração de uma viúva. Não uma qualquer, mas a viúva de John Batterson Stetson, o famoso inventor e fabricante do chapéu do mesmo nome, que um ano antes tinha entregue a alma a Deus.
O pintor deve ter efabulado para a viúva sobre o palácio que possuía em Portugal, e a americana provavelmente se entusiasmou, e quis visitar esse domínio exótico. Só que no dia em que apareceram ambos na Glória ela não deve ter gostado do que viu, porque logo anunciou que partia.
O marido insistiu que ficasse, pois o monarca, ao corrente da colossal fortuna herdada do rei dos chapéus, o ia fazer conde. E ela seria condessa, com brasão autêntico, o que na democrática América não era para desprezar.
A ex-viúva concordou, mas mal viu as cartas de nobreza autenticadas, disse que não ficava nem mais um minuto. Ficasse ele. O conde, homem avisado, preferiu acompanhá-la e ambos desapareceram para todo o sempre, sem que se lhe conhecessem herdeiros.
Com mais de trinta anos de abandono os telhados tornaram a desabar. O que restava das paredes foi caindo pouco a pouco. A vinha, as terras de lavoura, a mata de pinheiros, de novo se tornaram um matagal. E como naquele tempo todo não aparecera ninguém a reclamar-se dono da propriedade, ou a pagar as contribuições devidas, em 1935 a Justiça pô-la a leilão.
Pouco depois apareceu em Arcos de Valdevez o lorde William Pitt, que viu a ruína, gostou dela e a comprou.
Também o lorde morreu sem herdeiros. A história que, numa tarde do Verão de 1948, ele próprio me contou, e as que depois se seguiram, embora interessantes, são longas e complicadas em demasia para tratar aqui.
D. Geraldo Coutinho de Lima, senhor de Cochim - a primeira feitoria europeia da Índia - e proprietário de duas naus, tinha recebido as terras da Glória por doação de D. Manuel I em 1515, começara a casa, mas viria a falecer com ela ainda nas paredes.
O seu primogénito, D. Fernando, seguiu as pegadas do pai. A ele se deve que em Cochim se tenha feito a primeira impresão de livros na Índia. Infelizmente, no dia em que os carpinteiros terminavam o arcabouço do telhado, fulminou-o um ataque, dando corpo à lenda de que daí em diante todos os donos da Glória morreriam sem herdeiros.
Reza a crónica que essa praga lhe fora rogada por um judeu de Cochim, a quem ele tinha enganado num negócio, e que até ao fim do mundo ela cairia sobre todos os que tocassem a propriedade.
O paço e os terrenos passaram então para um D. Afonso, parente afastado. Esse, para escapar ao mau destino, tinha-se dado ao trabalho de, por volta de 1635, viajar para Cochim, na certeza de que lhe não seria difícil encontrar um judeu no meio dos indianos e da meia centena de portugueses que lá haveria. Para sua surpresa, porém, nessa altura já os holandeses tinham conquistado a feitoria, e nela não havia duas ou três famílias judias, mas milhares, a maior comunidade judaica da Índia, formada ali desde o século IV da era cristã.
Percorrendo o labirinto de ruas, seguindo pelos ribeiros e lagoas de Cochim, procurando por entre os templos indianos, as mesquitas e as igrejas, D. Afonso acabou por descobrir a sinagoga. Mas do homem que lhe interessava, nem rasto.
Passado ano e pico voltara para a Europa num galeão holandês, desembarcando em Vlissingen, onde pouco depois viria a falecer do tifo. Sem herdeiros.
Deixadas ao abandono durante anos, as terras da Glória eram um matagal, e do paço inacabado, que fora derruindo aos poucos, restavam as cantarias. Na segunda metade do século 18, a grande praga de míldio que tinha assolado os vinhedos franceses, contribuíra para uma súbita prosperidade das vinhas do Minho, e dessa altura data a construção do paço actual.
Porém, sobre quem o mandou fazer, ou quando, não há documentos. Fala-se de um nobre excêntrico, que por não ter mulher nem parentes, mantinha naquele deserto um grupo de músicos para lhe alegrar as refeições. Fala-se de um pai louco, que encarcerava as filhas num subterrâneo, por temer que elas o desonrassem. Conta-se de um galego, que fugira para ali por ter enriquecido, depois de ter feito com o diabo um pacto que o obrigava a comer gente.
Ao certo nada se sabe, a não ser que a praga do judeu ainda surtia efeito, pois de novo ficaram as terras ao abandono e o solar meio arruinado.
Comprou-o nessa altura um emigrante, que tinha voltado velho e cansado de Manaus, onde enriquecera durante o boom da borracha. Sendo de opinião que, para a sua própria felicidade, ninguém precisa mais do que pão para a boca e uma cama para dormir, o homem mandara levantar só parte do que tinha caído. Para conforto dos seus oitenta anos juntara-se com uma rapariga de dezoito, filha do caseiro.
Como era de esperar, a união não deu fruto. No começo do século XX, o novamente abandonado e meio derruído edifício passou para as mãos do filho de um lavrador abastado de Ponte de Lima. O rapaz, que tinha inclinações românticas, e nenhuma intenção de mourejar no amanho da terra, dedicou-se uns tempos à pintura. Mas pelos jeitos depressa se aborreceu da arte. Em 1907 decidiu partir para Filadélfia, onde o seu charme conquistou o coração de uma viúva. Não uma qualquer, mas a viúva de John Batterson Stetson, o famoso inventor e fabricante do chapéu do mesmo nome, que um ano antes tinha entregue a alma a Deus.
O pintor deve ter efabulado para a viúva sobre o palácio que possuía em Portugal, e a americana provavelmente se entusiasmou, e quis visitar esse domínio exótico. Só que no dia em que apareceram ambos na Glória ela não deve ter gostado do que viu, porque logo anunciou que partia.
O marido insistiu que ficasse, pois o monarca, ao corrente da colossal fortuna herdada do rei dos chapéus, o ia fazer conde. E ela seria condessa, com brasão autêntico, o que na democrática América não era para desprezar.
A ex-viúva concordou, mas mal viu as cartas de nobreza autenticadas, disse que não ficava nem mais um minuto. Ficasse ele. O conde, homem avisado, preferiu acompanhá-la e ambos desapareceram para todo o sempre, sem que se lhe conhecessem herdeiros.
Com mais de trinta anos de abandono os telhados tornaram a desabar. O que restava das paredes foi caindo pouco a pouco. A vinha, as terras de lavoura, a mata de pinheiros, de novo se tornaram um matagal. E como naquele tempo todo não aparecera ninguém a reclamar-se dono da propriedade, ou a pagar as contribuições devidas, em 1935 a Justiça pô-la a leilão.
Pouco depois apareceu em Arcos de Valdevez o lorde William Pitt, que viu a ruína, gostou dela e a comprou.
Também o lorde morreu sem herdeiros. A história que, numa tarde do Verão de 1948, ele próprio me contou, e as que depois se seguiram, embora interessantes, são longas e complicadas em demasia para tratar aqui.