sábado, janeiro 28
sexta-feira, janeiro 27
quarta-feira, janeiro 25
Santa Apolónia
(Clique)
Era outro assunto, mas a frase
escapou-lhe e a confidência veio assim, um desabafo inesperado, a melancolia de
mistura com o desalento e as decepções da maternidade, da vida de casada, da
juventude perdida, do suceder monótono dos dias.
Domingo de manhã. Sete e meia.
Acordaram e continuam imóveis, os corpos não se tocam, um instante depois ele
levanta-se, espreguiça-se, sai do quarto. Ela abre os olhos. Incomodada pela
claridade do dia volta a cerrá-los, imita mentalmente o tom com que ele anuncia
sem a encarar: - Vou ver os miúdos.
Claro que também ela ama os
pequenitos, sofre com os achaques, se assusta com as pontas de febre, as
tosses, aflige-se quando não comem ou os vê chorar sem razão que adivinhe. É
mãe, sente-se mãe, mas foi sendo subtilmente empurrada para fora do território
onde o Alberto e a sogra dispõem e regulam.
Estranha metamorfose. Era todo
de desporto e festas, mas ao tornar-se pai quase que de um dia para o outro se
transformara num ser quezilento, preocupado com ninharias. Ele, que nunca tinha
levantado um dedo, lavava agora a loiça, limpava o pó, arranjava os armários,
acomodava a roupa, ia ao supermercado, mudava as fraldas, preparava as papas,
ouvia-o combinar com a mãe, aos risinhos, idas à praia, passeios ao Zoológico.
- No sábado vamos ao Cirque
du Soleil. Dizes sempre que detestas circos, se calhar não queres ir. Ou
queres?
Respondia-lhe com um aceno e
pegava nos cigarros, saía para a varanda, os miúdos a bater nas vidraças, ele,
paciente e muito pedagógico, a explicar que o tabaco era um veneno, teriam de
esperar até que a mamã apagasse aquela porcaria.
Ouve-o entrar no quarto de
banho. Era diferente, mas tornou-se homem de hábitos e a manhã de domingo é
hora de sexo.
Ela própria se surpreende da
rapidez com que se veste. Apanha a mala, leva os sapatos na mão, ouve os filhos
a rir de qualquer coisa que a sogra cantarola. Fecha a porta sem ruído e não
espera pelo ascensor, desce as escadas a correr. Olha o relógio num
automatismo. Oito e vinte.
No táxi hesita um momento, mas
logo decide:
- A Santa Apolónia, se faz
favor.
terça-feira, janeiro 24
Tudo depende
(Clique)
Uma companhia de
transportes holandesa recusou emprego a
um chofer islamita, depois deste ter declarado que não apertaria a mão de
colegas femininas, dado que a sua religião lho proíbe.
Recorreu para o
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, instância que se celebra pelas posições
politicamente muito correctas das suas sentenças, e como era de esperar este
deu-lhe razão.
Agora que as eleições
se aproximam, o primeiro-ministro Mark Rutte (foto) veio ontem declarar que a sentença
era estapafúrdia, que quem vive na Holanda tem de respeitar as leis e as normas
do país, caso contrário é ir de volta para donde veio.
Por ter perguntado
numa reunião eleitoral, num café, se os presentes queriam mais ou menos
marroquinos na Holanda, Geert Wilders foi o ano passado levado a tribunal, acusado
de apelar ao racismo e à discriminação.
Não são dois pesos
nem duas medidas, tudo depende de quem o diz, não do dito. Também se pode
deduzir que, com as eleições à porta, dá jeito mudar de casaca, e deitar mão
aos argumentos dos “racistas”.
segunda-feira, janeiro 23
Ar puro e carro seguro são luxos de rico
(Clique)
A vida ensinou-me a ser cauteloso em matéria de
certezas, sobretudo quando apregoadas pelos que, inchados da própria
competência, não hesitam em afirmar como se endireita a política e se governa
um país. Aliás, acerca de políticos, apenas dois continuam a
merecer o meu respeito: o presidente Truman, que tinha na secretária uma placa com a frase: The buck stops here ( A responsabilidade
é minha); e Pierre Mendès-France , " uma referência, e símbolo de uma
concepção exigente da política".
Temos agora o presidente Trump, que assanha atrizes,
costureiros, activistas, e bem pensantes, ao mesmo tempo que uma massa de
"seres desprezíveis" espera vê-lo endireitar o que outros deixaram
torto.
No que me respeita, o personagem não desperta simpatia,
mas devo conceder que o modo directo e a sua rudeza fazem um interessante
contraste com a banalidade das afirmações dos políticos em geral, sejam eles
estadistas, bonzos da EU, ou os moços de recados que chefiam ministérios.
De qualquer modo, e porque muitas das suas decisões a
todos afectarão, vou seguindo as críticas que uns lhe fazem e as esperanças que
outros nele põem, cuidando de não me deixar arrastar pelos argumentos dos que
lhe são favoráveis, nem pela histeria dos oponentes.
Dei assim com uma entrevista de Edward Luttwak (1942),
que foi consultar de Reagan e é agora assessor de Trump. Está longe de ser um comentador
qualquer, pois os governos da China, Israel, Itália, Japão e várias
multinacionais são clientes da sua consultoria. E concorde-se ou não, fala
claro:
“Quando os media se referem a Trump é sempre questão
de sentimentos de vingança e ódio, o que demonstra apenas arrogância
intelectual. Do que realmente se trata é da redistribuição dos rendimentos,
pois nos últimos vinte e cinco anos a deslocação da prosperidade da classe
trabalhadora para outras classes, resultou numa mudança estrutural na sociedade
americana. Um exemplo: a classe média exige carros muito seguros, o que obriga
a satisfazer tantas regras que o preço médio de um novo é de 13.000 dólares. Metade
dos americanos não podem pagar esse dinheiro, têm de conduzir carros em segunda
ou terceira mão, e daí menos seguros. É como se para quem possui menos a
segurança não conte.”
“O meio ambiente? Claro que somos todos a favor. Mas
subsidiam-se os cientistas e as indústrias da energia solar e eólica, e fecham-se
as minas de carvão, atirando dezenas de milhar de pessoas para o desemprego.
Será então estranho que elas se revoltem?”
Se é demagogia, o tempo o dirá.
….
Publicado na DOMINGO CM.
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