Senhor Presidente, minhas senhoras, meus senhores,
As circunstâncias obrigam-me que comece por uma explicação, motivo porque vou recuar oito décadas, até ao Primeiro de Dezembro de 1940.
Então com dez anos, e o melhor aluno da primária, escolheram-me para aprender de cor um longo poema patriótico.
Durante manhãs sem fim, a tremer com os berros e os puxões de orelhas que me dava o director, um sádico, esforcei-me e consegui decorá-lo. Mas quando me puseram diante do mar de gente, que enchia o salão nobre da Junta de Freguesia de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia, terra do meu nascimento, ainda fui capaz de articular meia dúzia de frases, mas logo em seguida fiquei mudo, e por muito que me esforçasse, não saía palavra.
Riu-se a assistência, acudiu-me a minha carinhosa professora, que com beijinhos e dando a mão me tirou dali, pondo fim ao martírio.
Infelizmente, o trauma ficou. Discurso não é comigo, mas a modos de vingança, o Demónio condenou-me a uma carreira de trinta anos de ensino na Universidade de Amesterdão, e muitos mais a participar num sem-conta de conferências, entrevistas, programas de televisão e rádio.
Acontece isso, felizmente, numa que não é a minha língua-mãe, mas aquela em que há uns setenta anos me exprimo, comunico e funciono, e a qual se tem mostrado imune a traumas, talvez por nessas ocasiões se tornar outra a minha identidade .
Neste momento, porém, retornando física e mentalmente à língua portuguesa, e tendo presente o episódio que referi, é bem possível que dum instante para o outro a minha dicção se torne pior , e desde já peço desculpa pelo incómodo.
Numa ocasião solene como esta, mas também porque a oportunidade é única, sinto a obrigação de, no íntimo, recordar algumas das pessoas que, com generosidade e de várias maneiras, contribuiram para que a minha vida tomasse um rumo que nada fazia prever, nem me atreveria a sonhar.
Abriram-me portas de que ignorava a existência, tampouco poderia imaginar a importância que tinham. Mostraram-me caminhos que julgava intransitáveis para as minhas capacidades. Foram anjos-da-guarda à borda de precipícios. Deram-me a mão, todas as vezes que dela precisei. E ensinaram-me a não ter pressa no julgamento do semelhante, a atentar como são fluídas as noções do Bem e do Mal.
Já todos faleceram, mas continua viva a memória que deles tenho, e o sentimento de gratidão que me merecem.
Para meu prejuizo, mas de longe a longe também para proveito, tenho tido sobra de situações desconcertantes. Felizmente, muitas têm vindo com uma favorável qualidade: a de terem esperado, e só me surpreenderem numa altura em que os muitos anos, e a maneira como encaro o mundo, de certo modo põem travão ao meu comportamento, tornando-me assim mais capaz de seguir as regras, aceitar os costumes e, cortêsmente, participar no convívio social.
Segundo as regras desse convívio, do homenageado espera-se que se mostre feliz, bem humorado, respeite o bom uso, e no seu discurso utilize as frases tradicionais de surpresa e agradecimento, a honra que é ver o seu nome escolhido para o de um estabelecimento público, tanto mais tratando-se, como agora, de uma Casa da Cultura.
Sinto-me de facto grato e honrado, mas permitam que, de certo modo, ache a homenagem excessiva, pois para quem há quase oito décadas vive longe, e em terra estranha, não é coisa pouca a surpresa de, praticamente de um dia para o outro, ver em maiúsculas o seu nome lá no alto e, em estátua, confrontar quem passa.
Sendo esse o caso, estou certo que compreenderão a minha atitude, a qual é, em simultâneo, de gratidão e embaraço, pois homenagens assim cabem a grandes personalidades, enquanto que eu me sinto inclinado a parafrasear Eça de Queirós, quando dizia: “Sou um pobre homem da Póvoa de Varzim”.
Guardadas as devidas distâncias, para com aquele que foi o mais importante dos meus mestres, posso sinceramente dizer também, que sou, e me sinto, “um pobre homem de Estevais de Mogadouro”.
Espero, todavia, que sejam benévolos para comigo, uma vez que, de maneira a conseguir alguma paz de espírito com tão surpreendente, e desmesurada homenagem, abuso da oportunidade para chamar a atenção da Câmara para a existência, na nossa aldeia, de um cemitério secular, único no testemunho que dá, e provavelmente único no país. E ainda a nossa fonte de chafurdo, também ela secular e única, mas de tal modo arruinada que é grande o risco de que não tarde a desaparecer.
Não levem a mal o eu aproveitar a ocasião, mas peço que lhes acudam, para que não desapareçam esses humildes, mas preciosos testemunhos, pois além de serem únicos, mantém-se com eles a memória do que foi a vida de sofrimento, carência e humildade dos nossos antepassados.
Terminando aqui, seria deixá-los com uma impressão melancólica de ruinas e envelhecimento, enquanto que de facto, e felizmente, a nossa velha aldeia está a renascer.
Encontra-se já numa situação em que os visitantes de fim-de-semana são por vezes às centenas, atraídos pela paisagem e o espectáculo das dezenas de milhar de amendoeiras.
E dentro em pouco ficará terminada a instalação do agroturismo, cuja qualidade e conforto irá surpreender, e de várias maneiras, será também razão para pôr Estevais de Mogadouro naquele mapa que verdadeiramente conta, o que faz despertar o interesse e atrai visitantes.
De maneira directa e indirecta, deve-se muito dessas melhorias à generosidade de D. Palmira Sanches de Morais Pimentel, à dedicação de sua irmã D. Urbana Noronha Alves, mas também, e sobretudo, ao excepcional dinamismo, capacidade de realização e empreendimento de Jorge Noronha Alves, que quase desde o berço tenho por afilhado honorário.
Assim, pois, embora sejam muitas as sombras, há também motivos para esperança. Evidentemente, mais para aqueles que têm um futuro, e calculam em anos, do que para mim, que tenho um passado, e conto em dias.
Agradeço o terem-me ouvido.