domingo, março 3

A mão de Belzebu

 

­­­Tolice minha, guardar as agendas desde o começo do século. Aborrecimentos, circunstâncias, incómodos e sustos que a memória prudentemente apagou, revivem ao acaso de uma agenda que – tem de ser a mão de Belzebu – cai da prateleira e fica aberta na data de uma situação que, tivesse o Demo exigido pagamento, eu sem refilar teria aberto os cordões à bolsa. Talvez até conseguisse um sorriso, não fosse ele imaginar que o fazia de má vontade, e lhe desse para soprar mais forte as labaredas do Inferno.

Assim me vi de boca aberta, a olhar fascinado para a página de 29 de Janeiro de 2006, onde tinha anotado para a tarde um encontro em Oostende, e ouvir um senhor que anos antes conhecera. De longe a longe insistia ele na história que queria contar, mas em sua casa, onde guardava prova das andanças de um longínquo antepassado, que negociara vinhos em Gaia.

De Amsterdam a Oostende são quase trezentos quilómetros, e já a pensar no almoço que me ia oferecer em Antuérpia, meti-me à estrada. Acabava de passar Breda quando a minha mulher telefonou, alarmada, que não perdesse tempo, voltasse já, era sério e de extrema urgência.

Obedeci, mas na primeira bomba parei. Recordo a ansiedade de temer obra do Demo, e o alívio que foi ouvir que o Anjo da Guarda levara a melhor. Do hospital tinham telefonado. O que o meu médico, ao longo de quase um ano tomara por “um carocito sem importância”, era cancro, já num extremo em que não se punha a questão de operar em meses ou dias, até as horas poderiam contar.

De forma que não houve almoço nem visita, foi-se-me também a memória de como deixei a bomba, para de súbito me ver rodeado de batas brancas e caras sérias.

Demorou anos, até que a Satanás pude dizer: Cruzes, Canhoto!