“– Não te esqueças das fotografias.
E sem mais, nem gesto ou sorriso, volta-me as costas, vejo-a depois atravessar
a praça e desaparecer na rua que leva ao mercado.
A transição é tão imprevista e inconsequente, tão inexplicável, que me deixa estupefacto.
Ressinto aquela brusqueza como um insulto e, por mais que procure, não encontro
razão para ela se comportar assim. Será que inconscientemente traí o meu
desejo? Ou adivinhou a minha luxúria? Que por qualquer motivo de súbito se
cansou da companhia? Alguma afirmação tola que fiz?
Fico-me nas perguntas sem resposta, vai demorar até reconhecer que mais uma vez
estrebucho na armadilha que sempre, invariável e estupidamente, para mim
próprio cavo, como se nada aprendesse das lições passadas.
Que esperava, que espero eu, da estranha a quem só me une a memória do morto
que ela nunca conheceu? Amizade? Sexo? A realização do sonho?
A rapariga na flor da idade e o velho com mais do dobro dos seus anos! Será que a loucura
não passa? Que a imaginação não dá tréguas? Terei de aceitar que findarei baboso, com um
pé na cova e a sofrer ilusões de adolescente?
Acalmo e no íntimo tenho de confessar que sim, sonhei. De manhã vagamente,
alegre de me ver na sua companhia. Orgulhoso dos olhares invejosos que lhe
deitavam, como se fosse eu o dono e ela a minha presa ou recompensa.
Sonhei quando cândidamente me agarrou pela mão para que corresse, e me
fez tremer à entrada do café, colada a mim. Perdi a cabeça enquanto telefonava
e vi-me a acompanhá-la em não sei que bizarra excursão aos lugares da noite que
só na fantasia existem.
Viria depois o clímax dos desejos nunca antes satisfeitos, das sensações nunca
antes vividas. Viriam gritos e arrebatamentos, a saciação das fomes que não têm
nome.
Ela telefonava, concentrada, e eu, querendo-me sério e casto, fingindo ternura, em
pensamento tomava-a sem pudor, impunha-lhe a bruteza do meu cio.
Agora é como se acordasse e dou-me conta do rumorejar das conversas em redor,
das dezenas de rostos. Indeciso se irei já embora, se ainda fico, arriscando que
um ou outro me venha perguntar quem ela é e eu, para ocultar a confusão, me
emaranhe a sugerir mistérios em vez de responder.
E como se o chamasse ou os meus pensamentos lhe fossem íman, Garcia, o colega a
quem antes acenei, vem sentar--se à minha frente, os olhos brilhantes de
marotice:
– Temos engate, hein?
Abano a cabeça, desagradado com o comentário, mas ele, curioso, faz que não dá
conta:
– Carninha nova. Que o colega, toda a gente sabe, gosta delas tenras. E
estrangeira, vê-se logo. Alemãzinha?
– Não chateies. É holandesa. Filha de um amigo.
– Holandesa! Homem! Ainda melhor! Eu nunca tive sorte, nem com as turistas, mas
os gajos da minha terra que estão na Holanda dizem que é um fartar. Lá são elas
que avançam! Atiram-se de caras! Dizem que é o que lhes vai dar mais pena quando
retornarem. Mas agora a sério, filha de um amigo? Alguém de cá?
– Não. De um rapaz da minha aldeia.
– Que trabalha lá?
– Trabalhou. Faleceu e ela veio por causa da papelada.
– Então não é o que
eu tinha pensado.
– Por acaso não.
E depois de uma pausa, olhando de través a sublinhar a malícia:
– Mas com certeza não resistes. Lá em casa, ao passar, sempre lhe dás uns
toques. Cuzinho firme, tetinha de mão-cheia, lindas pernas. Cara de boneca. Já tinha
reparado, mas
quando saiu e passou pela minha mesa, até me deu aflição. Corpinho de
tentar um santo.”
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Quetzal, 2010