Aquilo devia estar mesmo entranhado no mais fundo do seu sentir, porque em alturas em que a conversa não o justificava, estava-se por exemplo a falar como era a linha do Douro antigamente, no tempo das locomotivas a vapor, e o Simões começava a abanar a cabeça, encarando-nos como se estranhasse estarmos todos ali.
No princípio havia sempre um de nós que, de brincadeira, se adiantava ao que ele ia dizer, e era assim a modos de um desabafo, porque tantas vezes repetido tomara a qualidade de mania.
- Não sou racista, nunca fui! Mas não gosto de franciús, pronto! E ninguém me vai obrigar a gostar! É ou não é?
Encolhíamos os ombros, aquela confissão do nosso camarada tornara-se uma espécie de aborrecida música de fundo, entrava nos ouvidos mas não chegava ao cérebro.
Infelizmente, quando menos se esperava em alguém como ele, que tinha uma saúde de ferro e só conhecia o hospital por ir lá de visita, em Agosto o nosso camarada teve um AVC fulminante e, como antigamente se dizia, entregou a alma ao Criador.
Lá fomos então ao funeral, naquele estado de espírito em que sem querer nos entreolhamos, aparentando um abatimento que raro sentimos, mas ajuda a distrair da pergunta insidiosa que nos tortura, e não conseguimos pôr de lado: quando será a tua vez?
Como se tivesse adivinhado o meu pensamente, oTiago agarrou-me pelo braço, sem precisar de apoio, mas na realidade para sussurrar:
- Estamos a cair como os tordos! É uns atrás dos outros! Sabes que o Jean-Pierre também está nas últimas? Deu-lhe qualquer coisa, caiu na rua, foi atropelado e parece que não escapa.
- Mas que Jean-Pierre?
O Tiago encarou-me com um misto de descrença e ironia, mas qualquer coisa lhe deve ter dito que eu de facto tinha esquecido:
- Claro que te lembras! Aquele bonitão que ensinou a mulher do Simões a tocar violino e depois...