Apresentação de Alentejo Prometido, de
Henrique Raposo, Lisboa, 08.03.2016
Em meados de
Dezembro, o Henrique Raposo convidou-me para apresentar o seu livro. Aceitei
por duas razões, sendo a segunda a amizade que lhe tenho. A primeira é a do
respeito que me merece a sua inteligência, e a consequente e independente
maneira como defende as suas convicções.
Entretanto, e infelizmente, o que seria apenas um
corriqueiro convívio, transformou-se num caso, acendendo paixões que não
deveriam ter lugar numa sociedade civilizada e democrática, onde o diálogo é a
regra, antes pertencem à bandalheira de quando muitos fazem muito barulho,
criando para si próprios a quimera de que têm a razão do seu lado.
Em boa saúde mental, e por mais contrária que ela
seja, a ninguém ocorrerá negar ao outro o direito à sua opinião. Se lho nega,
automaticamente se exclui do quadro em que a democracia e a liberdade de
expressão funcionam, dando preferência ao insulto e à ameaça, o que,
permitam-me que o diga, não abona o grau de civismo de quem assim se comporta,
como levanta dúvidas sobre as suas intenções.
Curioso de como ele expressaria a relação com as suas
origens, quando recebi este livro do Henrique sentei-me a ler, pondo de lado a
falta de afinidade que tenho com o Alentejo, o desalento que me causa aquela
terra plana, a recordação dos calores que lá suportei, e a estranha indiferença
que por vezes sofri ao perguntar um caminho ou pedir uma informação.
Tendo colocado esse biombo entre mim e a obra, li de
uma assentada – expressão que só o Francisco
José Viegas e eu ainda usamos, talvez também o Mário Cláudio – li pois, de uma
assentada, até à página vinte e cinco, parando então para me recompor da inveja
que senti, e iria aumentando até que
parei.
A ver se explico o que me levou a franzir o sobrolho no
começo deste Alentejo Prometido, e continuaria para lá da página vinte e cinco.
Acontece-me ser filho único, único neto, os primos que
tenho são daquela gente em quarto ou quinto grau que, quando por acaso me
recordam o parentesco, deixam a impressão de estarmos a representar numa peça
do teatro absurdo.
Ora o Henrique Raposo, não pertence apenas a uma extensa
família, tem à sua volta uma verdadeira tribo, o que aos meus olhos de filho
único, com primos que nada me dizem, equivale à posse de certezas e
seguranças comparáveis às que na Idade
Média garantiam os castelos.
Esse sentimento de inveja manteve-se, mesmo naquelas
passagens sobre os festejos do
casamento, em que, tivesse eu participado, me sentiria demais, e incapaz de ceder
a tão esfusiante alegria.
Li até ao fim, deixei assentar, e comecei uma vagarosa segunda leitura que
foi, de facto, uma espécie de conversa, tentando compreender a visão do autor,
e fazendo o possível para que o escasso conhecimento que tenho do Alentejo, os
meus preconceitos, e a memória de um ou outro caso, não viessem interferir.
No Verão de 1964, passados catorze anos de ausência,
pude voltar a Portugal, e o desejo de rever o país levou-me a Évora, depois ao
litoral alentejano.
Recordo Santiago do Cacém; a lagoa de Santo André; o
diminuto porto de pesca que Sines então era; a estranheza de Porto Covo, uma
praia deserta. Em Vila Nova de Milfontes achei que chegava de calor e solidão.
Em Abril de 74, e nos meses seguintes, andei muito
pelo Alentejo, tiraria dessa experiência um romance, mas a época era de confusão
e irrealidade, dando-me ideia de testemunhar cenas de mau teatro, trágicos
enganos e esperanças mentidas.
Dez anos depois, em busca de documentação para um guia
de Portugal, percorri o Alentejo durante quase um mês.
O 25 de Abril tinha feito alguma diferença, mas para mim, homem do norte, ficou a recordação da planura, o sem-fim de sobreiros, azinheiras, aquele
fogo do céu, o retraimento de algumas das
pessoas com quem lidei.
A leitura de Alentejo
Prometido veio confirmar alguns dos meus preconceitos para com a província
e os alentejanos, mas em vez de me considerar
apoiado, ressenti uma certa desconfiança em relação às proposições do
autor, e à furiosa maneira como ele desanca a sua terra e a sua gente.
É que o Henrique, como se tivesse nas mãos uma
daquelas mocas históricas de Rio Maior, bate a torto e a direito, e quando
chegamos ao fim, à página 103, resta a impressão de que no Alentejo só se
salvam as mulheres.
O que me pareceu demasiado radical para me convencer.
Fora que, pelo meio, e foi isso que me deixou de pé atrás, canta ele um inesperado
Laudamus ao norte de Portugal.
Por questões de genética, e porque se dá o caso das
minhas raízes serem desses lados, presto uma doentia atenção a tudo o que se
afirma sobre a terra e o povo nortenho.
Ora o Henrique, que tão franca e fortemente varre os
alentejanos à mocada, fica todo de mimos quando se refere à minha gente.
Segundo ele, lá pelo norte, de manhã até ao serão, e
pelos vistos noite fora, os nortenhos constantemente se abraçam e apertam,
sorriem, querem-se bem, saúdam o forasteiro.
Da certeza desse carinhoso tratamento passa ele ao
Douro, e é como se estivesse a recitar as Geórgicas
de Virgílio. Com tanto entusiasmo, aliás, que eu por momentos me deixei
convencer, dando por mim a olhar para as vinhas e as arribas do Douro com a
ingenuidade dos turistas que, espichados ao sol, vão rio acima comendo e
bebendo.
Deixem que eu tente refrear o entusiasmo do Henrique
sobre a minha gente a minha terra.
Se o alentejano tem essa trágica inclinação para, pelo
suicídio, se libertar das agruras da vida, o transmontano deita aos outros a
culpa de tudo, raro lhe passa pela cabeça enforcar-se. Em vez disso, pega na
caçadeira ou na calagouça, sai à rua e mata o vizinho.
Aquele Douro bucólico que entusiasma o Henrique, com gente
que se beija e abraça, hotéis de cinco estrelas, barcos de luxo, não é o genuíno,
o rude, pobre e atrasado Douro, é uma realidade virtual para inglês ver, fabricada
um pouco à maneira das aldeias de papelão, com que Potemkin maravilhava a
imperatriz Catarina da Rússia.
Parafraseando Bocage, este longo introito não foi eu
que o fiz, mas o literato em mim, tentando ganhar tempo para esconder a
perturbação.
Porque Alentejo
Prometido me perturbou. É tudo menos um livro que convide ao gracejo e à
ligeireza. Estão nele os factos, as dolorosas estatísticas, as confissões, a
realidade crua de um viver pobre, a grande secura de bens e afectos sob um céu apostado a calcinar com igual
ferocidade o chão e a alma.
O Henrique põe-se a si próprio, aos seus, aos
alentejanos e ao Alentejo, num palco para onde o espectador olha com um
sentimento em que o medo de ver e a curiosidade vão de mãos dadas.
Ao mesmo tempo, porém, fica a dúvida: mau grado as
estatísticas, as tragédias que ele aponta, os testemunhos que partilha, não
será a sua uma visão demasiado unilateral? Haverá fidelidade no seu olhar, ou
somente paixão?
Porque é grande a discrepância entre o retrato que nos
faz e, para só mencionar um, o do tão acarinhado cenário de montes românticos,
dos quartos de hotel que, com tectos de vidro, oferecem o requinte de dormir ao
relento sem o incómodo da canícula, da bicharada, e não querendo mais dos
alentejanos do que ouvir-lhes ao longe o
eco do cante.
Daí posso concluir
que de nada adianta fazer de advogado do Diabo, tão-pouco importa
concordar ou discordar do autor.
Um alentejano nascido, criado e reformado em Mértola,
vê outro Alentejo. Os muitos holandeses que conheço e lá vivem, falam de uma
terra paradisíaca, todo o avesso dos pólderes encharcados. E o turista, venha
ele de Lisboa, do Texas ou da Suécia, irá lá menos para ver ou sentir, do que
para se babar com as platitudes debitadas pela indústria do turismo.
De facto será sempre cada cabeça sua sentença, o juízo
de cada um não fazendo mais do que aclarar à sua maneira uma parcela da
realidade. Ou, o que também acontece, distorcer essa realidade, em função dos
sentimentos exaltados daqueles que apenas consideram justa a sua própria
opinião, e pouca ou nenhuma ideia têm do que seja o direito à liberdade da
palavra. Para não falarmos do que manda o civismo mais elementar: o respeito
pelos outros.
É que dá pena haver tanta democracia na boca e tão
pouca no comportamento.
Retornando ao livro.
Excelente prosa. Pode isto soar a cumprimento de
circunstância, mas está longe de sê-lo, pois vai tempo desde que de um colega
pude dizer o mesmo.
Esta prosa do Henrique Raposo, não me dá apenas a
satisfação de vê-la bem cuidada, mas prova
que não me devo afligir com a miséria dos temas, nem com as enxurradas de má
prosa, e os delírios de ignorância gramatical que, nos livros e jornais,
diariamente testemunho.
Não me venham com o fadinho em ré menor, de que as
escolas não ensinam e já ninguém lê.
O caso é que o geral das pessoas parece ter descambado
e, pelas razões que todos conhecemos – a histeria de querer marcar presença, um
pouco à maneira dos cachorros que vão dando mijadinhas em cada pneu de
automóvel – em vez de ler desataram a escrever.
Isso importa ? Creio que não. Na nossa sociedade,
mesmo nos tempos áureos do século XIX e meados do século XX, já era frequente a
queixa de que as pessoas não liam. De facto assim era e assim é, e a absurda
quantidade de livros editados, e vendidos, pouco tem a ver com o fenómeno da
leitura.
Porque ler implica pensar, emocionar, sentir, dispor
de tempo, actividades que pressupõem um nível de existência que nem a todos é
dado, mas também de que muitos desdenham ou desconfiam, pois não tem som, nem
cores, não dá fama, nem proveito imediato.
Assim sendo, arrisco-me a dizer que o Alentejo Prometido só irá cair nas
graças dos que sabem ler e se dão tempo para pensar.
Esses tirarão o proveito de serem confrontados com a
sinceridade de um autor que investiga, estuda, e procura compreender as razões
das suas origens, e do desencontro dos sentimentos, que ora são de pertença,
ora de rejeição.
Certo de ter compreendido e encontrado, surpreende ele
o leitor, afirmando:
"A linhagem do velho Alentejo termina aqui o seu
caminho. Não passará para as minha filhas. Não quero que elas sejam
alentejanas, porque eu próprio não me sinto alentejano. Sou filho de uma
migração que saiu do Alentejo, mas não sou nem quero ser alentejano."
Fora de dúvida que este desabafo é sincero e doloroso,
mas confesso – e peço desculpa – o Henrique apenas dá prova de juventude, de ter
agora certezas que um dia estranhará, julgando que pode escolher, que lhe cabe
o poder de abandonar.
É compreensível que sinta a necessidade de gritar aos
quatro ventos que não se sente alentejano, que cortou as raízes, mas o grito
que parece de revolta é apenas de impotência.
A impotência de nada poder remediar, a incapacidade de
compor o que nasceu e continuará torto, a tragédia de sentir que, no Alentejo,
são sem conta os males que não têm cura.
Digo isto com um sentimento de comunhão e melancolia, porque
também eu o gritei – não a uma província, mas ao país inteiro – jurando que não
queria pertencer, que recusava o fardo.
Poderia ter nascido daquela gente, naquele chão, mas a
minha sede de viver não se acomodava com aquele modo, nem aquela terra, pedia
outros horizontes.
E nem adeus disse. Um fim de tarde voltei-lhe as
costas, pus entre nós a largura do
oceano e, cortando ainda mais fundo, cuidei de usar outras línguas, quase esquecendo a minha.
Vivi assim décadas, certo de que conseguira desprender-me
e me encontrava a salvo.
Para um dia, sem aviso, me dar conta de que tinha sido
ilusão: o que eu julgara laços fáceis de cortar, eram algemas. Invisíveis, é
certo, mas fortes e permanentes.
O mesmo acontecerá ao Henrique.
Que grite contra o Alentejo, que o encare e lhe faça
um manguito. Que repita quantas vezes quiser que vai embora, que não lhe quer
pertencer.
O Alentejo sorrirá. Porque o Henrique Raposo não é
único, nem o primeiro que, magoado e triste, definitivamente se quer exilado. Tão-pouco
será ele o último.
Mas em todos, nos que partem desencantados, como nos
que se acomodam e ficam, pesa igual a mesma realidade: a marca que os
antepassados nos deixam na alma é indelével.
Ilude-se aquele que, indo embora, se julga capaz de poder
descartá-la.