sexta-feira, setembro 23

Peneiras


Essa gente existe. Seres distintos, habitando  mansões com um grande parque em redor, mordomo e pessoal. Quando recebem amigos e se sentam à mesa, a conversa pode, ao acaso de um remoque, começar por Tucídides ou Platão, ir daí para Johnson, Juvenal, os sonetos de Donne, as teorias de Keynes, os argumentos de Marx.
Das trufas aos pareceres tudo ali é fino, elevado. Motoristas, jardineiros e criadas são o muro  que os protege do vulgo, a massa vagamente humana, curvada, cinzenta, que  apercebem na rua por entre o fumo dos havanas que saboreiam, reclinados no couro dos seus Bentleys e Rolls-Royces.
Estou a ler um livro em que tudo é assim e confesso-me ligeiramente perplexo, pois como não se trata de romance, mas biografia, dá-me ideia de que o autor afrouxou as rédeas da imaginação.
Contudo, o anotar isto não é crítica, apenas ciúme. Bem gostava de me ver num desses mundos, não por causa dos charutos, pois não fumo, nem pelos Bentleys, mas para tomar parte na conversa, dizer que continua a fascinar-me a leitura de Gaius Julius Caesar e não passa dia que o não consulte.
Ciúme, pois, porque se o disser no meio em que vivo desatam a rir, até são capazes de dizer que minto.