sexta-feira, março 14

Remexendo nas gavetas (38)

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Recordações dum tempo em que ainda me levava a sério, mas só já acreditava em metade do que ouvia. Em menos de metade, para ser franco.

quinta-feira, março 13

Rebanhos

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"Mesmo aquele que só possui um modesto nível de instrução, o holandês rapidamente se apercebe do cachet que emprestam estes dois conceitos, geralmente unidos numa única expressão dita de um só fôlego: ‘Arte e Cultura’.   
Está o tempo mau para a praia? Então vai o fim-de-semana ser dedicado à arte e à cultura. A dificuldade está na escolha, porque a oferta é estonteante, desde a exposição do pintor que, algures no pólder, só pinta canecas e cadeiras, até às maravilhas dos grandes museus.
Se lho perguntam, o holandês explicará como cuidadosamente planeou as suas férias em função das horas de sol que o destino, de preferência exótico e longínquo, oferece, mas  acrescentando o infalível estribilho de que vai também desejoso de contactar os autóctones, e com muito interesse pela sua arte e cultura.
Arte e Cultura ! Que me perdoem os que sabem ser moderados nos seus juízos e  me deveriam ser exemplo. Perdoem-me os artistas que nos enriquecem o espírito. Que me compreendam os que, intimamente e sem espalhafato, se concentram a admirar um quadro ou uma catedral.
À seriedade de todos esses sinceramente faço vénia. O que me torna exagerado e rabioso é a massificação do que, de facto, não deveria ser massificado, o pasmo bovino  e superficial das hordas que olham sem saber o que vêem, convictas de que ficar especado e silencioso defronte de uma obra de arte empresta status e diferencia do vulgo.
Eu sei, por toda a parte é o mesmo, o fenómeno é geral, dá-se nos países com majestosos museus e nos menos dotados em tesouros. Constato-o no meu Portugal onde, embora menores, nas filas para os eventos culturais é também mais elevada a proporção de basbaques, do que a dos que lá estão com sério e fundado propósito.
Mas aqui não me interessa o mundo, nem sequer a terra onde nasci. Interessa-me apenas a Holanda, o país onde há tanto de bom. Nele gostaria eu de ver menos conformismo com os ditames do comércio, mais rebeldia contra o pechisbeque na arte e na cultura. Menos seguidores de modas e tendências, mais espíritos críticos. Saia a palavra: menos massa, mais elite, menos rebanho, mais pastores conscientes da sua responsabilidade e mais competentes no seu saber."

*  *  *
in "A Ira de Deus sobre a Holanda".


quarta-feira, março 12

Tormentas

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"- Sabe que mais? – gritava ela, rouca, fora de si. – Deixe-me em paz! Vá curar a bebedeira pra outro lado! Chame o tio e metam-se os dois na cama, como de costume. O velho não vê, nem se importa, grandessíssima puta!
Num gesto alucinado quis bater com o receptor no descanso, mas ao falhar a pontaria escavacou-o contra o rebordo da mesinha de cabeceira.
O choque pareceu trazê-la à realidade. Perplexa, seguia com os olhos o telefone que, tendo saltado da peça quebrada, pendulava seguro pelos fios, tornando irreal e incoerente o berreiro da mãe.
Levantei-me para desligá-lo da tomada, e depois, sem palavras, porque nenhuma a confortaria, tomei-a nos braços, a fingir que não ouvia os soluços, ignorando as lágrimas, a acariciá-la para que esquecesse. Até que acalmou e adormeceu.
Mais do que doutras vezes tive inveja do sono que só se dorme na juventude e, durante horas, fiquei acordado, de costas, ela a pesar-me no braço. Surpreso  de compreender a mãe e lastimá-la, pois embora discordasse do aparato com que tinha sonhado e, a seguir, a família junta numa grande comezaina, festa, convidados, presentes, música, bebida à farta, reconciliações e beijos, também eu, no íntimo, desejara outro dia. Confusamente seguro de que a mulher adormecida junto de mim, ou a rapariga, talvez a criança que ela ainda era, jamais partilharia comigo as harmonias por que eu ansiava.
De facto, pouco nos unia – a insónia escalpela sem piedade as ilusões – e o que eu sabia dela, ou ela de mim, não eram mais do que aparências, um verniz que resistia às confidências, a fronteira onde paravam os impulsos e a ternura.
Tínhamos sinceramente apalavrado o casamento, como se o sim, o selo, tivesse mágica suficiente para derrubar muros. Não somente os nossos, mas os que vinham de trás, levantados por outros. Dizendo-me eu que bastaria querer, esperar, dar tempo, e a felicidade deixaria de ser o lampejo que por vezes entrevíamos, para se tornar duradoura.
Todavia, na realidade da noite tudo isso aparecia remoto, desfocado, inconsistente, agravado pelas ironias que o destino trama.
Julgando preparar o futuro, eu apenas mudava de cadeias. Nunca mais me poderia esconder de mim próprio sem a certeza, o remorso, de que conscientemente a deixava de fora.
A protegê-la? Não. A poupar-me. Para Martha o meu passado permaneceria a incógnita que era, e o meu Chaco um país onde as suas razões não tinham entrada."
 * * *
In "A Sétima Onda".

terça-feira, março 11

À espera de amanhãs


"Que roube, que faça mal, apanham-me, dão-me um destino. Mas assim, quieto, parado, à espera do milagre, o pai a sustentar-me, não conto. Arrumado como um objecto sem uso. Do menino que prometia ficou isto: o corpo mole, a cabeça pesada de desejos que não são para satisfazer, um nojo vago do que está à volta e é vil.
 Pego num livro e perco-me nele, duas horas doutra coisa, doutra vida, até que ao passar defronte da cómoda o espelho me devolve uma fealdade crua e febril. Tivesse ao menos nascido bonitão, musculoso… Mas quem me quer? A Lota, quase anã, enfezadinha, que se dá atrás do quintal, um resto de história para um dia contar. Mulher que me queira o sorriso, as mãos, o resto, mulher de verdade, não nasceu.
Dias de inverno, dias de chuva, ao anoitecer estou na cama, a esperar um amanhã que traga novidades."
* * *
In "Montedor".

domingo, março 9

Sobre o tarde

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Numa idade que deveria ser de repouso, introspecção e sabedoria, vejo-me a fingir de actor. Modestamente, é certo, sem aspirações de estrelato, e tarde demais para arrependimento.

sábado, março 8

Vinho?

O hóspede aceitava o convite, fazia até muito gosto, mas ficássemos sabendo que só bebia vinho sem álcool. Vinho sem álcool? E então não é que, para nossa surpresa, o produto existe?
Se tem o sabor de vinho? Mais ou menos, pois a ciência química é capaz de muito.
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sexta-feira, março 7

Knock'emstiff

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Que haja uma terreola com o nome de Knockemstiff - traduzido livremente: Rebenta-lhes os Cornos - desafia a imaginação. Mas o livro é excelente leitura e há que concordar com o crítico do Daily Telegraph: "Try to imagine a drunken punch-up between a redneck Hemingway and an amphetamine-fuelled Raymond Carver."
Surpreendente e original.
(*) Grato a Isabel Lucas pela dica.

quinta-feira, março 6

Cavaco, Soares, o arquitecto Taveira e a condessa de Alpedrinha

TIME, 08.02.1988
"Num pobre país,os ricos de novo ostentam."
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quarta-feira, março 5

Cegos, surdos, e contentes


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Há cegos que não gostam de ver, surdos que preferem não ouvir, e muitos que acreditam em histórias da carochinha.
Mais uns dias e Portugal, a Flor e a Foice chega às livrarias. Para já, e por certo beneficiente para os que gostam de abrir os olhos e querem rever o valor das promessas e a validade das certezas, anotem-se as palavras do Prof. David Birmingham, da Universidade de Canterbury, pronunciadas em 2002, em Bordéus:

"Sobre as consequências a longo prazo do golpe de estado de 25 de Abril de 1974, as ideias recebidas e aceites são que Portugal estava a ser oprimido de forma única pela sua longa noite de ditadura e foi libertado de forma única pela sua jovem geração de capitães idealistas do exército. A questão é: até que ponto é que a mudança foi radical, que duração tiveram os seus efeitos, a continuidade foi a marca da história portuguesa do pós-guerra, ou com a queda de Caetano ocorreram mudanças estruturais e institucionais fundamentais? As mulheres ganharam um novo estatuto social a seguir a 1974 ? Os capitães do exército substituíram realmente os capitães da indústria que decidiram, muito antes de 1974, levar Portugal para a Europa como os mestres do novo Portugal ?"

terça-feira, março 4

Passo acelerado

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Porque os olhos se vão pouco a pouco habituando, leva tempo a que a memória acorde e dê conta da mudança: há coisa de vinte anos para cá as mulheres mudaram de passo. Raro caminha uma ou outra com a graça e o remanso que se dizia próprio do feminino. As idosas ainda vão com a sem-pressa a que obriga a idade, mas as que hoje rondam os quarenta, cinquenta anos, ou daí para baixo, pelo menos a mim costumam dar a impressão de que se alistaram nos comandos ou estiveram nas marchas forçadas dos regimentos de infantaria.
É um atirar de pernas de regimento coreano em parada. As calças e as minissaias por certo facilitam a desenvoltura, mas creio que toda aquela agitação provém menos de uma pressa que do espírito competitivo, tornando o espectáculo da rua o anúncio de inesperadas transformações: vão as raparigas em passo enérgico e acelerado, mais fortemente contrastam aqueles sujeitos que, decotados até ao umbigo, a barriguinha da perna à mostra, se movem dengosos, molengões, os olhos postos no iPhone e nas sandálias Jesus.