quinta-feira, julho 1

Maquilhagens

O Pedro foi um bom amigo. Os seus múltiplos talentos estonteavam, mas sempre a hesitar sobre o caminho a seguir nenhum aproveitou. Firme foi-o apenas na devoção à mãe, com quem todos os domingos almoçava. A senhora ficara viúva muito jovem, vivia isolada num andar na Penha de França, tinha no filho mais novo o único laço que a prendia à realidade, porque os outros, com existências complicadas, só de longe a longe a visitavam.
Na vida do meu amigo, contudo, não faltavam obstáculos. Apaixonara-se por uma mulher casada e mais velha, que antes de poder viver com o amante sofrera anos as peripécias de um tumultuoso divórcio.

Casado, Pedro continuou sem falha o ritual de ao domingo almoçar com a mãe, mas sozinho, porque a senhora, ultra católica, reprovava a paixão do filho por uma mulher que o arrastara para o pecado e, além disso, pela diferença de idade o poderia ter parido.

A esposa entretanto adoeceu e a vida do meu amigo tornou-se um inferno de hospitais, tratamentos, especialistas, romagens a santuários, benzedeiras que afastavam o Mal dos corpos e das almas. Por fim, sabendo-a perdida, guardara-a em casa e servira-lhe de enfermeiro, de criada, até de palhaço, tentando distraí-la quando ela sofria mais com o terror da morte iminente.

À beira da exaustão, porque nem o emprego nem os cuidados à mulher podiam esperar, nem uma única vez falhou ao almoço de domingo com a mãe.

No dia em que a mulher faleceu, Pedro tomou a si a tarefa de lavá-la, vesti-la, compô-la e maquilhá-la, para que as visitas e os amigos não a achassem demasiado desfigurada pelos estragos da doença.

Dir-se-ia que o meu pobre amigo merecia um tempo de repouso, mas à sua volta as mortes foram-se sucedendo: colegas, tias centenárias, irmãos devastados pelo álcool e os revezes, sobrinhos ceifados pela droga. Finalmente a própria mãe morreu. Tal como já tinha feito com a mulher, de novo se encarregou ele próprio de lavá-la, compô-la e, sabendo-a vaidosa em vida, de se esmerar numa maquilhagem que escondesse os danos do sofrimento e da idade.

Os nossos contactos foram-se espaçando, o tempo voou, quando me surpreendeu com uma longa mensagem, onde anunciava que depois de oito anos de viuvez e solidão tinha encontrado a companheira ideal. Jovem ainda, ela tem atrás de si uma vida de infelicidade e desde há algum tempo não goza de uma saúde brilhante, "mas a força do nosso amor tudo vencerá."

A expressão patética fez-me sorrir, mas logo me tomou um sentimento de tristeza, a impressão de que a vida do Pedro continuará a ser uma sequência de ilusões e discretos calvários. Nunca ele será estrela de ópera, escritor brilhante, o Van Gogh deste tempo. Em vez das obras-primas dos seus sonhos e do talento perdido, o destino parece não lhe deixar mais do que ser boa pessoa e maquilhar os cadáveres das mulheres que ama.

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10.2001