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No Keizersgracht, no centro de Amsterdam, o restaurante Sakhalin ocupa um rés-do-chão onde, durante mais de um século, esteve uma tipografia. Desse passado industrial, à mistura com quadros modernistas e arte africana, máscaras, azagaias, ficaram nas paredes as fotografias emolduradas para que os tipógrafos de então, bata cinzenta, braços cruzados, quase todos de bigode retorcido, tinham posado em redor de imponentes Heidelberg.
O ambiente é pseudoboémio, a gastronomia excelente, o serviço impecável, a clientela tem o ar descontraído de quem, por ouvir dizer, sabe da existência de problemas de dinheiro.
Como dois maestros na direcção de uma orquestra, Ludmila e Zarko revezam-se na sala, ajudam no bar que, ao fundo do estabelecimento, separa a sala da cozinha.
Físico de atleta, boas proporções, o que mais prende em Zarko é a bonomia, dando aos incautos a ideia de terem diante de si um negro bonzão do tempo das missões.
Recolhido por um quaker americano no cais de Benguela, onde provavelmente nasceu e foi abandonado, Zarko afirma que vai ser difícil escolher a língua com que se apresentará a São Pedro, e explicar depois ao santo a sua insatisfação com religiões e ideologias.
Em Boston, para onde o levaram, ao descobrir que o garoto possuía um extraordinário Q.I., inscreveram-no num excelente College, e daí guarda uma pronúncia tão refinada do inglês que, não fosse a cor da sua pele, se diria ouvir um
O português e o quimbundo reaprendeu-os quando voltou a Angola, que acabava de se tornar independente. Do que mais se orgulha, porém, é da sua fluência no russo, que aprendeu na Universidade Lumumba, em Moscovo e, mais tarde, juntamente com artes menos pacíficas, iria aperfeiçoar no centro de instrução que o antigo KGB mantinha em Kiev.
Loira, olhos de um verde-acinzentado, só ligeiros traços asiáticos denunciam ter Ludmila nascido no Cazaquistão. Alguns íntimos estão ao corrente de que a gracilidade da atitude e dos movimentos, tão elegantemente naturais, alguma coisa devem aos anos em que foi bailarina do Kirov.
Quando a paixão os toma, ou um ou outro cliente russo os desafia, é uma experiência comovente ver Zarko e Ludmila, que na aparência tanto diferem, esquecer o que os rodeia e interpelar-se como actores num palco, recitando Pouchkine e Blok, ou longos trechos de Byliny, os poemas históricos que narram as façanhas de Svyatogor, Volkh e Ilya Muromets.
As circunstâncias que os trouxeram para Amsterdam, e por que razão meia dúzia de anos atrás abriram um restaurante, quando se esperaria vê-los em ocupações bem diferentes, são segredos que não partilham.
Respondem com evasivas e gracejos, bons mots, dão a ideia de que levantam a ponta do véu, mas a rir se desdizem, ou a resposta é de tal modo cortante que deixa o curioso incapacitado de reagir e sem vontade de continuar o interrogatório.
A um jornalista da televisão que o entrevistou e, julgando-se informado, quis saber se o funcionamento e a fama do restaurante tinham a ver com a frequência com que lá se viam oligarcas russos, tinha Zarko respondido com explicações ingénuas, e que era muita a inveja.
A cada pergunta arregalava os olhos num pasmo teatral, erguia os braços ao céu e, ao findar, como se aquilo lhe tivesse parecido do mais cómico, rebentou numa gargalhada.
O jornalista foi efusivo nos cumprimentos, agradeceu a disponibilidade e, sim, com muito gosto aceitaria o convite para, com a esposa, vir uma noite jantar.
Da entrevista pouco lembrava, mas seria impossível esquecer o jantar, um banquete, iguarias e vinhos de qualidade que nunca provara. E a sobremesa! Aquele bolo regado de vodka a flamejar!
Iam-se despedir, a mulher ainda lhe deu uma cotovelada, mas achou que teria muita graça e não resistiu: pôs-se a imitar o sapateado dos cossacos do Don.
Caiu, Zarko ergueu-o, amparou-o, mas nesse momento a bebedeira deve ter disparado qualquer coisa nos fundos do seu calvinismo. Soltando o braço, voltou-se para a sala e, de dedo espetado, desatou a gritar:
— Oligarcas! Exploradores!
As pessoas riam do desacato e do escândalo que ia ser, afinal era figura da televisão, mas entretanto Ludmila e Zarko tinham-no levado para a saída.
A convalescer do braço partido e da carga de porrada, ocorria-lhe que a cena no restaurante, velha de meses, talvez explicasse como um choque de nada, quando saía do estacionamento e outro carro fizera marcha atrás, o atirara para o hospital.
Os dois sujeitos com cara de artes marciais e cabelo à escovinha, que o tinham provocado, deitando-lhe a culpa, não eram de explicações. Quando acabaram com ele desapareceram, dei xando-o a sangrar e sem sentidos.
De vez em quando já nem é sensação de aborrecimento, mas uma forma de vazio, que de modo instinctivo criamos, na esperança de que o poderemos encher se despejarmos nele as banalidades do dia.
As da nossa vivência talvez bastassem para encher três quartos, não fosse dar-se o caso de que em toda a parte, e a cada momento que afastamos atenção do que nos ocupa, seja ele trabalho, estudo, diversão, quase de imediato a banalidade vem ao assalto.
Insidiosa e constante, ataca-nos em permanência na rua e na televisão, nos jornais, no telemóvel, no contacto social. E como não há filtro que a limpe, travão capaz de fazê-la parar ou raio que a parta, o remédio é conseguir uma paciência igual à que se supõe terem os santos.
Uma vez por outra, sendo boa a disposição, ainda é possível alcançar algo que se assemelhe a essa já mais que rara virtude. Infelizmente, como se costuma dizer, no dia-a-dia “outro galo canta”, e é então que a paciência toma qualidades de metal raro.
No triste, trágico e malfadado tempo que agora vivemos, a banalidade adquiriu, e provavelmente vai manter, como que um refinamento dos maus efeitos que provocava. E o ficarmos de imediato ao corrente do que na nossa rua e no mundo acontece, pode ser tomado como um inegável benefício, mas em ocasiões sem conta é também uma muito incómoda e banal intromissão.
São setecentos, oitocentos mil, talvez milhão e meio os que já morreram na guerra da Ucrânia? Talvez outros tantos ou mais os que lá vão morrer? É banal e logo esquecida a notícia de uma tragédia assim. São os bandos de criminosos quem manda no Haiti? Vê-se, lê-se, encolhemos os ombros.
Quando nalgumas situações é grande a probabilidade do tropeço, mais urgente se torna descobrir maneira de o evitar ou, caso essa falhe, fazer de modo a limitar os danos.
Contudo, para nosso mal e prejuízo, se a pseudo-sabedoria acima pode valer para momentos como o de atravessar a rua fora da passadeira, esquecer a panela ao lume, ou sair de casa deixando as chaves penduradas na porta, é duvidosa a sua eficácia no ramerrão do dia-a-dia. Tanto mais porque, embora alguns vivam horas de febril actividade, mesmo esses não escapam a perguntar-se por que tem de ser assim, se não haverá maneira de resolver, ou modificar, o que parece imutável.
Nesse imutável entram umas quantas, embora raras ocasiões, a que se poderá escapar uma vez por outra, mas são implacáveis na exigência do regresso à rotina. Higiene, horas de sono e repouso, a alimentação, as funções do corpo, só essas já encheriam a lista, mas há ainda como que os anexos do que implica a vida em sociedade.
Não se aceita – aliás é imprudente – o desvio aos usos, costumes e atitudes a que, por exemplo, obriga o entrar com outros no ascensor do prédio onde se mora. Esse ramerrão conta igualmente – talvez até mais - na rua de um bairro em que todos os vizinhos se conhecem. E nele há que incluir as circunstâncias da vida numa aldeia, pois aí o ramerrão toma como que uma importância de decreto-lei, sujeitando o transgressor a ter de explicar e justificar uma mudança de hábito ou comportamento. Caso contrário, arrisca-se a que o sujeitem a um mesquinho, mas sempre aborrecido, e muitas vezes duradouro ostracismo, que pode ir do olhar vesgo ao extremo de lhe negarem a fala.
De modo que assim, também no ramerrão é válido o provérbio: cautela e caldos de galinha não fazem mal a ninguém.