terça-feira, dezembro 19

Aprender a falar

 

Venham elas do púlpito, da tribuna, de uma cátedra, sejam ditas num parque com os pés assentes num caixote, ou à mesa do café, de cotovelos fincados no tampo, o rosto apoiado em ambas as mãos para melhor lhes acentuar a sinceridade, isto de palavras tem demasiado que se lhe diga.

Umas vezes é candura tomá-las pelo que parecem significar, noutras é descabida a suspeita, há-as que se diriam de amor e são de ódio, algumas saem à ligeira, sorridentes, escondendo assim a confissão para que falta coragem. Palavras há que são doces, mas de picada mais venenosa do que a da víbora, noutras ouve-se a moleza da banalidade, da rotina, parecem ser ditas para que o ar se agite ou haja uma ilusão de convivência.

Há as palavras que apenas se usam para contradizer, irritar, impor diferenças, vontades, mostrar aversões. Felizmente que as há também sinceras e carinhosas, suaves à alma, ao ouvido, genuínas no tom, modo e significado.

Porque assim é, talvez devêssemos aprender de novo a falar. Com simplicidade, embrulhando menos as intenções, os interesses e os significados.  

 

 

domingo, dezembro 17

Os milagres do sabonete

 

Uns acharão graça, para outros será motivo de troça. Depende isso do carácter, da sensibilidade, sentido do humor, ou em que medida vê no próximo o seu semelhante.

O Guilherme e o Alípio, além de vizinhos, são como eu atormentados por cãibras. Quem delas sofre não precisa de explicação. Os outros imaginem o que sentiam os condenados à tortura da polé nas masmorras do Santo Ofício.

Daí que as nossas conversas, passada a do estado do tempo, recaem sobre o achaque em que as pernas, numa amostra das penas do Inferno, se nos retorcem apertadas pela turquês do Diabo.

Uns dizem que é falta disto ou daquilo no sangue, ou nervos, vitaminas a menos, e assim por diante. Certo é que nem as meninas da farmácia conhecem remédio que faça bem ou pelo menos dê alívio.

Estávamos nisso há anos, até à semana passada, quando ao começo da noite a Hilda bateu à porta. Surda, sorridente, segredeira, escondia as mãos sob o avental, o que de certo modo lhe dificultou o ritual beijoqueiro.

Num sussurro explicou então que vinha por causa das cãibras, mas avisando que eu teria de guardar segredo. Feita a jura, explicou que há uns dois meses o Guilherme deixou de sofrer as dores. E nem ele compreende o milagre, nem ela lhe vai confessar, que isso aconteceu devido à promessa que fez à Santinha de Arcozelo, e a um remédio que a irmã lhe mandou de França.

Sabendo quanto sofro, mas às escondidas do homem, que é um unhas-de-fome, a Hilda encomendara para mim o mesmo remédio, e ao senhor padre também já tinha pago igual promessa à santinha.

Dizendo isto tirou de sob o avental o objecto, explicando que o devo desembrulhar para que espalhe o cheiro milagroso, e tem de ficar aos pés da cama entre os cobertores.

Agradeci, jurei que assim faria, mas de facto não sei que destino dar a este “Savon de Marseille, au beurre de karité”.

 

sexta-feira, dezembro 15

Não te cansas de aprender?

 

Se assim é faz como eu: vai aqui e agradece ao Prof. A. M. Galopim de Carvalho.


quarta-feira, dezembro 13

Dores e desespero


As conversas em que falamos e nada dizemos, os gritos que vêm de tão fundo e ninguém ouve, as lágrimas que o coração chora e o sorriso esconde, o ar ameno, o modo simpático. 

Deus nos acuda nas grandes dores e proteja no desespero, pois em nós próprios raro encontramos salvação, dados que somos à fraqueza, ao fingimento, mais atreitos a preferir a sombra à claridade, a ceder em vez de enfrentar, a mentir como criança ingénua.

O Senhor se compadeça do que por medo, ilusão, ou arrogância, se julga capaz de afrontar o mundo. Pobre dele, que ignora a História e os muitos que o precederam e lhe deveriam ser exemplo. 

 

segunda-feira, dezembro 11

"Modern Times"

 


                                                     © Sandu Mendrea

domingo, dezembro 10

Na hora da partida

 

É vontade raivosa que muitas vezes me assalta, mas quando consigo travar a tempo, passados uns instantes de reflexão logo descarto a ideia, ciente de que o resultado seria funesto.

Dá-se o caso, e com ele há vidas sofro, que me desconcerta a violência e disparidade dos meus sentimentos para com a terra em que nasci, as raivas que ela me provoca, como se em vez de um lugar, um território, uma nação, Portugal fosse gente.

Ora o vejo como um sujeito estúpido que me dá vontade de insultar e agredir, ora um tonto de tal modo desvairado que não paro de abanar a cabeça, de vez em quando uma inocente criança, que em mim desperta insuspeitados carinhos e ternura.

Olho-o de longe e assusta-me a frieza com que disseco o seu funcionamento, o sarcasmo que me provocam os pandilhas que há décadas o esbulham, fingindo que governam, os sortidos donos daquilo tudo, os que se dobram ajoelhados como escravos de galé. E ainda os jeitos, as luvas, o fatalismo, as vénias, a cunha, a subserviência para com os que estão acima, o desprezo para com os que dependem. O medo generalizado, os brandos costumes, as manhas, o respeitinho. Aquela inveja, que de tão extraordinária e corrente parece ser genética. A promessa raro cumprida, idem a sornice, o deixa para amanhã, a fatuidade, o valor das aparências, o gosto da rasteira.

Mas depois, tão entranhado português que sou, e protegendo-me de mim próprio, logo amoleço, procuro razões de brandura e desculpa, fecho um bocadinho os olhos, embalo-me com a esperança de que cheguem os amanhãs que sempre desejei.

Contudo agora, melancolicamente certo e seguro que a minha hora não tardará, sei que vou partir sem os ver chegar.