sábado, agosto 27

A vida e Clausewitz

 


São muitas e estranhas as razões que nos prendem a língua. O que calamos por medo, tibieza, cobardia, mas também por caridade, outras vezes desencanto, a perguntarmo-nos como é que depois somos capazes de sorrir com tanta naturalidade.

Fechamos os olhos e o entendimento, somos prontos no salamaleque, com um gesto largo damos ao outro a primazia e encolhemos o pé que preparava a rasteira.

É corrente dizer-se que a vida é teatro, e é possível que para os simples assim seja, mas na realidade está longe de sê-lo. A vida é campo de batalha, com lutas corpo-a-corpo e bombas armadilhadas, explosões, sabotagens no escritório, nos tribunais, na estrada, nos armazéns, no estádio, na cama de casal.

Descreiam os que ainda não assistiram nem participaram, mas também a esses chegará a hora de calar, como hão-de aprender que a serenidade do dia-a-dia é cortina de fumo a esconder ataques e contra-ataques, hostilidades em que nada contam os armistícios, as tréguas para recolher feridos, os acenos de bandeira branca.

A vida, como Clausewitz o diz da guerra, é o domínio do esforço físico e do sofrimento.

quinta-feira, agosto 25

Que sabem eles?

 

Que sabem os outros de nós, mesmo quando a nossa biografia é pública? Que sabem de nós, mesmo se confidenciamos ou confessamos? Que sabemos de nós próprios? Que queremos saber?
A cada instante o semblante muda, o sorriso é diferente, o modo fingido, as palavras ditas com o significado e a intenção que os outros esperam e espelham as que eles nos dizem. Movemo-nos num teatro de sombras, em palco de aparências, tão habituados à representação que a levamos a sério e nela nos sentimos bem. Vivemos a nossa fantasia no emprego das nove às cinco, vivemo-la com a família, entre os amigos, na rua, imitando a solidariedade, o carinho, o entusiasmo, a atenção, os cuidados.
O eu, o verdadeiro, aquele que tudo sabe – sim, tudo - e nos atormenta, a esse há muito condenámos à prisão perpétua. Infelizmente, o cárcere não é à prova de som, deixa passar os sussurros, quando menos esperamos ouvimo-lo desfiar o que queremos esquecer da nossa biografia e de nós próprios.

 

terça-feira, agosto 23

A simpleza campestre

 

As boas histórias não se podem contar, porque para tirar delas todo o proveito se teria de revelar o lugar da acção, descrever o ambiente, os personagens, pintar deles  retratos fiéis, descer à minúcia dos tiques e das expressões, pôr a nu as taras que escondem.

No anonimato da cidade há a vantagem da ficção, mas os meios pequenos das vilas e aldeias são verdadeiro teatro ao ar livre, com a particularidade de que o que é representado no palco necessita de interpretação, é a modos de um enredo em que o real e o fictício se emaranham em episódios, em significados, voltas e contravoltas, miragens, cenários em constante mudança.

Iludem-se os que acham complexa a vida na cidade, mas para seu descanso é bom que por lá fiquem, porque não aguentariam dois dias a chamada simplicidade da vida campestre.

 

 

domingo, agosto 21

De faca na liga

 

É daqueles casos de que se diz cada cabeça sua sentença, mas neste são tantas as cabeças, tão opostos os interesses e desmedidas as raivas, que na opinião da maioria só pode acabar mal. De modo que a todo o momento se espera o desfecho, mas ao mesmo tempo com esperança que embora tarde, ou por milagre, as coisas acabem por se arranjar e o sossego volte à aldeia.

Mas os milagres são raros, e quem conhece a Filomena Quadrazais, por alcunha a “Engenheira”, solteirona de pêlo na venta e literalmente mulher de faca na liga, sabe que tê-la contra numa ocasião em que sinta prejuízo, melhor é passar de largo.

Começou a guerra quando o Benjamim, como quem não quer a coisa, ao acender o cigarro tirou as mãos do volante, e ao dar conta já de cada lado o tratctor rasgara o bastante do muro para que o atrelado passasse.

Foi penitenciar-se à “Engenheira”,  tinha sido mesmo distração e pagava o que tivesse de ser, mas mandou-o ela àquela parte, com o aviso de que lhe dava dois dias para recompor o descomposto.

Esses dois dias vão em meio ano, o alargamento foi mesmo um “descuido” e dá jeito a muitos, mas coragem de tomar partido ninguém tem, menos ainda de se mostrar contra a Filomena.

Sugeriu um ou outro que se falassae ao padre, o que caiu mal, porque já nem os sotainas têm a autoridade de antigamente, e no caso do padre Fernando ainda menos, dizem dele coisas que é melhor não repetir, tão sérias que quando sai de casa leva o filho do “Marreta” a servir de guarda-costas.

Estava o assunto num impasse, palpites ninguém arriscava, a esperança de milagre caíra abaixo de zero, mas é por isso mesmo que eles acontecem. Como foi ninguém deu conta, certo é que uma manhã apareceu o muro recomposto. O Benjamim garante que não teve a ver, mas diz que  não faltam casos daquilo que do dia para a noite o Diabo é capaz.

 

sábado, agosto 20

Quem te ouve?


É estranha, mas compreensível, a decepção que segue à pergunta que nos fazemos (pelo menos eu faço) sobre o propósito, a utilidade, o interesse deste comunicar com anónimos e estranhos que nos encontram ao acaso de um clique, ou quando por descuido o dedo mexe na tecla errada.

Antigamente levava o vento as palavras em certa direcção, iam por carta ou telegrama, mas nunca mais longe do que o outro lado do planeta. Hoje vão para toda a parte, chegam talvez às luas de Saturno, onde, se lá há gente ou andróides, me pergunto, no caso de que as entendam, o que com elas farão.

O mais certo é que nada. Mas por cá não paramos de comunicar, cheios de convicções e certezas, esperançado de que alguém nos oiça, supondo grande, importante, única, a abençoada Terra. E nós os seus privilegiados moradores

Mas da Terra já Eça de Queiroz n 'A Relíquia nos desiludiu: "A Terra! que é ella senão um montão de cousas pôdres, rolando pelos céus com basófias d'astro?"