quarta-feira, dezembro 29

O capitão

 

Conheci o capitão sem barriga e sem barba, depois com barba à Che, mangas arregaçadas, uniforme de camuflagem, botas de paraquedista.

Visitei-o num rés-do-chão em Benfica, e quando a Revolução tinha ano e meio num belo apartamento dos altos do Restelo. Felicitei-o pela promoção a general, benesse que há muito aguardava e no seu pensar merecia pelos - palavras suas – "relevantes serviços prestados à Pátria e à Revolução".

Gosta de mostrar fotografias desse "incrível momento". Não se distingue bem, mas diz que é aquele ao lado do Jaime Neves. Ao lado do Chaimite também é ele.

- Aqui, com o Salgueiro Maia. Sou eu.

Será. A figura é a três quartos, num instantâneo desfocado.

- Fomos amigos. Amicíssimos. Um grande herói. Olha eu aqui, quando fomos esperar o Cunhal à Portela.

Digo que sim, mas é uma confusão de barbas, ora à Che, ora à Fidel, uma ou outra à Marx. Ele pega na esferográfica, aponta uma cabeça na massa de gente:

- Eu.

Ultimamente fala menos no passado. A barriga pesa-lhe, há muito rapou a barba, tem problemas com o genro, acha que a Pátria, entregue "a esta súcia" vai água abaixo.

Gosto dele, enternece-me quando acrescenta:

- E eu, nesta idade, não lhe posso deitar a mão!

Enternece-me também porque o vejo como fiel retrato do salvador que vive em tantos de nós.

terça-feira, dezembro 28

Princesas

 

Era casado com uma daquelas loiras de quem se diz mal: grosseira, espalhafatosa nos modos e na fala, banha a mais, pintura a mais, ouro a mais, saia a menos, cabeça zero.

O divórcio saiu caro, mas diz que de boa vontade teria pago o dobro, a liberdade é um grande bem.

Para segundas núpcias foi buscar uma ao Suriname. Pretinha, redonda nas formas, avultada no altar, o traseiro empinado das altas cavalarias, beiços de Louis Armstrong a cantar What a Wonderful World.

Durou pouco. A sujeita tinha gostos bizarros, passava o dia na cama a ver televisão e a queixar-se da estranha gente, do frio, da neve, do pouco calor do Verão, do escuro do Inverno. Fazia refeições de M&M's e Coca-Cola. Soltava livremente uns fumos que, da primeira vez que o notou, quase tinha telefonado à Companhia do Gaz, a alertar que havia fuga.

Com esta a separação calhou baratucha, porque ela não estava ao corrente do que podia sugar e, nas suas bandas, também o ditado diz: "mão de criança com pouco se enche".

A actual encontrou-a o ano passado, quando esteve de férias na Nigéria, descobrindo que, à semelhança do que garantem mais de 60% das raparigas do país, era princesa. Um pouco como os russos no tempo dos Czares, que quando tinham uma vaca se intitulavam príncipes.

Por enquanto não tem queixas, mas aponta-lhe um mau hábito: sai à noite para dançar.

Contou-me isto quando fui visitá-lo ao hospital, onde está por ter quebrado uma perna a esquiar nos Apeninos. E diz que só ousa pedir-mo a mim, que sou amigo e vizinho, mas poderia eu, discretamente, dar uma olhadela às andanças da princesa?

Poderia, mas não estou em idade nem sou polícia. Fora isso, já a tenho visto  entrar no carro de um príncipe da sua tribo, sujeito de metro e noventa, aí à volta dos cento e vinte quilos, e umas manápulas…

Sosseguei-o. Disse-lhe que ela se comporta. Porém, mais certeza tenho que vai ser o terceiro divórcio, e a seguir um quarto casamento, porque diz ele que quem "comeu" princesa não quer outra carne.

 

segunda-feira, dezembro 27

A grande massa

 

Devia ser o contrário, mas quanto mais visivelmente arrogantes, cheios de si, seguros do que julgam ter visto, julgam saber e do que o mundo lhes deve, cônscios da sua importância, da alta craveira a que se elevam, da unicidade da pessoinha que são, mais me esforço para manter o sério.
Não vá você agora julgar que me refiro a ministros, banqueiros, cientistas geniais, escritores  candidatos ao Nobel. Com esses não tenho trato, vivem noutra rua. Falo de gente no meu dia-a-dia, o vulgo, o povão, a grande massa que vai dos chamados humildes à mais mediana das medianias.
Houve tempo em que a precaução mandava que os humildes se comportassem com humildade, e os que o não eram fingissem as virtudes de mostrar respeitinho, aceitando todos que cada macaco se aquietasse no galho onde as circunstâncias o tinham posto. Mas na atmosfera energética e acelerada em que vivemos, desapareceram os galhos e, sem apoio para assentar o traseiro, a macacada perdeu as estribeiras.
Há dias calmos, noutros ganho a certeza de que a maioria dos que me rodeiam, de facto caiu da palmeira para o volante. Mesmo os que não tiraram carta nem têm carro.