segunda-feira, abril 26

O ódio ao capital

"Semelhantes carreiras começaram em geral em Nijmegen ou Amesterdão, onde as universidades gozavam de uma mais acentuada fama de esquerdismo. Faça-se um protótipo do nosso rapaz. Assanhado no ódio ao capital (não o do papá e da mamã), comunista até à medula, beato na adoração das massas e dos oprimidos. Se lhe fosse possível teria lutado em Angola e no Vietname, cortado cana em Cuba. Só que isso implicava com o estudo, pelo que lhe pareceu mais avisado optar pela agitprop, ler Marx, Marcuse, Sartre e Althusser à luz de velas, e sair à rua embrulhado no kaffieh de Arafat. Entretanto reuniu à sua volta uma côterie de prosélitos fiéis, dos que não fazem sombra e se contentam com a ilusão de pertencer a um inner circle. São esses que, exaustivamente, irão anotando a evolução do trajecto político e social do futuro líder, a agudeza dos seus ditos, os gracejos, os detalhes das suas proezas sexuais, o contacto allegro ma non tropo que, para se entranhar do espírito do tempo, teve com a droga. Por eles saberemos mais tarde do vasto interesse intelectual do homem, do incrível leque de tópicos que já então o assoberbavam: ele era a Europa, ele era a Palestina, ele era o terrorismo, o avanço muçulmano, a ganância americana, os problemas da imigração...A par de tudo isso ainda arranjava tempo para os humildes, informava-se nos bairros pobres, tinham-no visto a conversar com turcos e marroquinos. E viajara. Extensamente. O que lhe permitia debater com autoridade sobre o petróleo do Alasca, os tumultos na Indonésia, a evolução da Rússia, a Guerra do Iraque, o trabalho infantil na Índia, o etanol do Brasil e mais, muito mais. Sobre todos esses e outros temas escreve artigos e tratados estrategicamente polémicos. Embora ainda em demora da gestação, já a côterie anuncia aos quatro ventos que aquilo são ideias novas, arriscadas, mas que seguramente vão contribuir para a solução dos mais variados problemas, sejam eles os do multiculturalismo, dos ilegais, da imigração ou das emissões de CO2. Se a sorte sorrir à sua ambição sobe no partido, chega ao nível onde se distribuem as boas postas, vê-lo-emos um dia secretário de Estado, talvez ministro. Mas o peluche de Bruxelas também não é para desprezar, e nas organizações internacionais há sempre lugar para mais um.Com embonpoint cara afogueada, marcas de conforto e boa mesa, terminará comissário da Rainha numa sossegada província. Os proletários? O radicalismo necessário para as verdadeiras mudanças sociais? Um mundo melhor, mais limpo, mais justo? Ele esforçou-se para contribuir que tudo isso se realizasse! Provam-no os seus tratados e compêndios, as intervenções, as conferências onde o ouviram com atenção e respeito! Leia-se a imprensa do tempo! Sorrirá, desculpando com evasivas e um enfastiado gesto as ilusões que na mocidade todos temos, todos devemos ter. Porque a realidade é complexa, dura, bem outra. Então não é? Não o sei eu? Não o sabemos todos? Foi menor o bafejo da sorte? Entrará para um desses institutos partidários onde se preparam as alternativas políticas para uma eventual subida ao poder. A esse nível são menos abonadas as benesses e menos refinadas as escaramuças da rat race. Também contam aí menos os pergaminhos intelectuais. E os antigos prosélitos, eles próprios com as suas ganâncias e hipotecas, deixam de ser quadrilha em que se possa confiar. A universidade é o último refúgio. Serão talvez mais modestos os honorários e menos mediática a fama, mas em contrapartida facilmente poderá assumir o papel de guru, essa na sociedade tão respeitada actividade.

Infelizmente apenas tenho a escrita para exprimir um desdém tão visceral: o que ressinto pela hipocrisia e o oportunismo dos políticos defensores do Povo, que com uma mão erguem o punho da revolta e com a outra arrebanham quanto podem para proveito próprio. Não me venham dizer que sempre assim foi desde que os políticos, e inúmeros outros, descobriram a mina de ouro que é a defesa dos humildes e a solidariedade para com os deserdados do mundo inteiro. Eu sei. Conheço a História."

in A Ira de Deus sobre a Europa – Quetzal, 2016

domingo, abril 25

Os vestidos que não se vestem

Alguns vão assim escapando à demência, ou pelo menos conseguem fazer com que as recordações se tornem numa espécie de vida alheia, contando o que foi na terceira pessoa, inventando um personagem que carregue o sofrimento que excede as poucas forças que lhes restam.

Ana está numa idade e chegou a um ponto que é talvez o mais doloroso da sua longa vida, porque para lá da fragilidade do corpo o seu espírito tem alturas em que lhe faz reviver como actuais momentos longínquos, assusta o ouvi-la dizer que logo, quando as visitas chegarem as vai surpreender, porque não vão acreditar como é lindo o vestido azul que a madrinha lhe trouxe da Espanha quando fez anos.

Não há visitas, há sim um vestido branco que ela muitas vezes tira do guarda-roupa e estende na cama, dando-se a ilusão de que o irá vestir, inconsciente de que o seu corpo mingou tanto que tem agora estatura de criança. Depois esquece-o ali e zanga-se com a sobrinha, acusa-a de que lhe andam a mexer nas coisas, mas no mesmo instante salta no tempo, imagina-se a conversar, conta pela milésima vez como o pai a foi levar ao Porto, enganando-a que era para ir tirar a carta, mas tinha sido para servir com uns senhores que viviam na Foz.

Uma vez por outra vem a seguir o relato, sem detalhes nem calendário, de como o senhor lhe tinha feito o mal, depois os meninos da casa. Mas são muitas as versões, e desencontradas, numas houve desmancho, noutras puseram o bebé na roda, ou então nem uma nem outra, foi um caso que ouviu contar.

Não a contradigam, não lhe desagradem, é ouvi-la em silêncio acenando que sim, pois ela terá perdido a força com que a pulso subiu na vida, mas o seu rancor continua igual, é o da miúda  pobrezinha que aguentou muito, e tanto se humilhou que nem a velhice consegue destruir a carapaça que ainda em certa medida a defende do mundo e separa de nós, os parentes afastados que nem sempre reconhece, confundindo os laços distantes, às vezes perguntando se somos quem pensa, ou se viemos vê-la por termos ouvido falar de como no seu tempo tinha sido rapariga bonita, tão prendada que o senhor padre uma vez lhe disse que merecia ter casado com um médico.

Mas nem médico ou chefe das Finanças lhe calhou na lotaria, teve de se contentar com o Diogo, e graças ao Senhor, porque o que lhe faltava em estudos tinha-o de sobra em boas terras que agora valiam ouro, e a vida inteira só uma única vez a acusou de que tinha vindo  arrombada.

Morreu em paz há duas semanas. Deus tem a sua alma.

sábado, abril 24

Urban Warfare

"Mal me dando conta, devagarinho, subia em mim uma irritação surda. A lembrança de, ao entrar em casa — antes um oásis de calma e silêncio — ouvir já na escada o garrular das amigas de Martha discutindo o Chaco, falando de guerrilha com gritinhos de júbilo, histéricas na raiva contra as Polícias, o Papa, a burguesia, as ditaduras.  No princípio, por curiosidade, deixara-me ficar entre elas, único homem, visita na minha própria sala, perplexo que nenhuma, antes ou depois, se distinguisse entre a multidão da rua. Umas, como Martha, eram determinadas e ferrenhas, fanáticas, convencidas de contribuir para uma felicidade futura e geral, imposta à força se não a aceitassem a bem, citando o Manifesto, capazes de recordar sem falha um discurso de Fidel. Outras, silenciosas, talvez tímidas, passavam o tempo a ler manuais: Urban Warfare, Booby traps, The lessons of Viêt-nam. Ao dar pela minha atenção, ou se desconfiavam que eu espreitava por cima do ombro, fechavam os livrinhos e sorriam, cândidas, à espera que o intruso se afastasse. Uma loira, vestida de cigana, ia dum grupo para outro com o pasmo na boca, perguntando a intervalos regulares: — Ainda há café? As mais, ao todo vinte ou trinta... Ó meu Deus! Eu não quero ser malicioso nem injusto e tudo isso está enterrado, findo, longe no tempo, com certeza são agora mães, funcionárias, pensam na dieta, discutem a TV. Mas como as odiei! Ladravam! Não lhes ouvi um raciocínio, uma dúvida, uma frase pensada, com pés e cabeça. Só latidos, fúrias incoerentes. Mesmo o que liam nos jornais, o que apanhavam nos cafés, lhes saía aos berros, aos uivos, tão agressivas que era estranho o não se pegarem pelos cabelos, incompreensível e irreal vê-las em seguida despedir-se aos beijinhos, prometendo voltar, achando as reuniões estupendas, sensacionais, o fim. Aos sábados à tarde, mal começavam a chegar, eu acenava-lhes bye-bye e ia para o café à espera de László, inquieto se ele demorava, contente quando o via entrar com Lizzie Thompson, a amante que deixara de esconder, uma rapariga de olhos meigos e a ponderação calma de muita experiência. Embebedávamo-nos devagar, serenamente, deixando correr o tempo, e saíamos depois os três de braço dado, por ternura, mas também a manter o equilíbrio que sozinhos nos faltaria, indiferentes a que o mundo precisasse de conserto, dando as boas-noites a quem passava, felizes com a iluminação dos canais, o ar fresco, a noite, a nossa fraternidade."

in A Sétima Onda – Quetzal, 2017

sexta-feira, abril 23

A nova classe

Faz tempo raro passa dia que não apareça alguém com a catequese. Hoje foi um casalinho. Vieram eles e os dois miúdos, assim que os felicitei pela boa aparência explicaram logo que lá em casa há muito que é tudo "biológico" e "verde", o que comem compram-no a um velhote que só a eles vende e não quer que se saiba, ou a uma mulherzinha que tem uma horta e cultiva tudo à moda antiga, genuíno e puro, sem químicos, sem porcarias. Então o pão que ela amassa em água de nascente com as próprias mãos e coze num forno de lenha, só provando se acredita.

Oiço, sorrio, já nem encolho os ombros. A nova classe dos "puros" olha desdenhosa para o  lumpenproletariat que só pode pagar a porcaria que sai das fábricas e não tem consciência de que contribui para destruir o planeta.

Ninguém se zangue, tome a mal, pense que lhe aponto o dedo. Sou pela liberdade.

Não é da idade

Não é da idade, palavra que felizmente não é. O meu fundo cansaço causa-mo o que vejo, o que leio, o que acontece à minha volta. Mais uma vez o circo das "bazukas" que vão salvar tudo e todos, as "pipas de massa" a imitar o Maná, o Todo Poderoso com escritório em Bruxelas, delegando nos vários Costas a distribuição da pecúnia, que por ser virtual, só cairá na mão esquerda dos que a sabem estender, que com a direita fazem um punho e afocinham os teimosos que também querem a manjedoura.

Desgosta, entristece, desespera, enoja tanta ganância, mas maior tristeza causa a modorra, a aceitação de um povo que parece ter sido injectado com apatia e sonambulismo, incapaz de revolta, um morto-vivo.

 

quarta-feira, abril 21

Um país de sol e dó

Então, como vai isso? De certeza bem. Seis dias passados já o temporal amansou. Nem Sócrates, nem a mãe de Sócrates, juízes, petições, "tudo como dantes, quartel-general em Abrantes".

"Sócrates amigo o povo está contigo" e admira-te, inveja-te. Em tantos séculos da História de Portugal não há outro do teu formato, no ramo és um Muhammad Ali e como ele "The Greatest", "The People's Champion". A um tolinho ouvi dizer que eras "o novo Marquês de Pombal", o que dá ideia de como te desconhecem, pois te devem ver mais na categoria de um Bernie Madoff.

A propósito das tuas recentes andanças José Manuel Fernandes escreveu no Observador que a sentença "Não foi um erro da Justiça. Foi um insulto ao país", e eu pergunto-me se o ilustre jornalista e eu vivemos no mesmo Portugal, porque o meu é impossível de insultar: baixa a cabeça, vira as costas, faz que não vê e esquece.

 

terça-feira, abril 20

Antipatias

Tal como o mistério de algumas simpatias, o de certas antipatias também se não pode discutir. Enraizadas nos arcanos do espírito ou consequência de nervos mal atados durante o período frágil da gestação, certo é que pela vida fora vamos carregando inexplicáveis aversões. Muitas surpreendem pela sua insignificância, mas debalde tentaremos escapar à garra com que nos apertam. Eu, por exemplo, não consigo olhar o retrato de um escritor de pena na mão, ou com os dedos pousados no teclado da máquina de escrever, sem que a qualidade da sua obra não sofra logo na estima em que eventualmente a tenho. Escritor que se deixa fotografar assim, diz a minha antipatia, não pode ser sério nem valer muito. Porque se uma pose dessas traduz algo, não é por certo o brio do talento nem a modéstia que pede a condição humana, mas o espírito frívolo que, para se afirmar, necessitados sinais exteriores do seu ofício. Também me desagradam, mas por outra razão, creio, os retratos de escritores com as suas estantes a servir de pano de fundo. Desde que nos últimos anos a reprodução fotográfica, mesmo a dos jornais, aumentou sensivelmente de qualidade, mal vejo um desses retratos logo de lupa na mão me ponho a esquadrinhar os títulos dos livros que ele ou ela possui, na esperança de descobrir uma sintonia com os meus próprios interesses ou simpatias. Sem resultado. Se mencionasse aqui os títulos das obras que assim encontrei, o leitor também como eu se perguntaria se a insignificância dos escritos de X ou Y se pode explicar através da parte assim visível do recheio da sua biblioteca. Recentemente publicado numa revista, o retrato de corpo inteiro de um conhecido escritor, diante de um colossal e impressionante armário a abarrotar de volumosos tomos, veio agudizar outra das minhas irracionais antipatias: a que  desde há muito nutro pelo abuso das citações. Acontece que o escritor que refiro, tendo ganhado fama de erudito, raras vezes escreve página em que não cite duas ou três celebridades. Num caso extremo, o seu posfácio à antologia da lírica de um obscuro, mas pelos vistos genial poe ta dinamarquês, recordo que não somente cerca de metade do texto se compunha de citações, mas que elas provinham defontes tão díspares como Ionesco, Snorri Sturluson, Marsilius,sir Charles Sedley, Andy Warhol, Virgílio, Marguerite Duras e muitas outras, algumas tão obscuras que em vão as procurei na enciclopédia. Desconheço se o intento tinha sido fotografar o escritor em questão ou o aparatoso móvel, certo é que ao atentar nas lombadas dos livros no seu armário me correu pelo corpo o arrepio da descoberta: eu tinha ali sob os olhos a mina das citações do homem, o armazém do seu saber. Por um instante cedi à tentação, peguei na lupa e comecei a ler os títulos. Mas logo me detive, tomado por um incómodo, a vergonha de penetrar impune no segredo da fraqueza e da artimanha de outrem. Porque é talvez por isso que o excesso de citações sempre acorda em mim a irritação. É que me dá o sentimento de surpreender alguém que, por si só, não tem força para andar e que, em vez de se servir discretamente das muletas em que se apoia, acena orgulhoso com elas. De facto, para se fazer valer, o hábil não necessita de originalidade nem saber verdadeiro: para ele e para o mundo a prótese já serve.

….

In Mazagran – Quetzal, 2012

 

domingo, abril 18

Um passeio ao "lago" do Sabor





 (Clique)

O FIAT do senhor Altino

É sorte que cabe a poucos o ter privado com uma pessoa excepcional, mas acontece também que há quem viva tão ensimesmado que não lhe sobra interesse para as qualidades alheias, vê-se sobretudo a si próprio, e no melhor dos casos considera os outros personagens secundários no palco da sua vaidade.

Faleceu em meados de Janeiro com a bela idade de cento e dois anos, fomos ao seu funeral, mas continuamos a ter dificuldade em falar dele no passado, o que dá medida da admiração que lhe tínhamos, e de como foi importante a sua amizade para o pequeno grupo que somos. Todos então já a entrar na velhice, sempre nos tratou por "rapazes", enquanto para nós, com um sentido antigo do respeito e da hierarquia, mesmo em pensamento ele era sempre  o senhor Altino.

Casado cedo, pai de muitos filhos e avô de muitos netos, conhecemos-lhe duas paixões. Ambas avassaladoras, felizmente temperadas pela sua humildade e sentido de humor: o Comunismo e os automóveis FIAT, em particular o clássico Cinquecento, comprado em meados dos anos sessenta e de que cuidava com o desvelo de galinha-mãe de um só pintainho.

Paixões avassaladoras, de facto, mas também contraditórias, como tantas vezes acontece  quando alguém é arrastado por sentimentos irreprimíveis. Discordarmos dele era uma coisa, outra era o senhor Altino continuar a ser comunista devotado aos ideais de Marx, o que nos merecia respeito e admirávamos como firmeza de carácter, e o mesmo valia para o seu sonho de que um dia a URSS renascesse grande e imperial como a tínhamos conhecido no tempo de Estaline.

O busílis estava em conciliar o ideal político com a paixão pelo seu Cinquecento, saído das fábrica dos Agnelli, a poderosa e ultraconservadora família italiana, tanto mais que aqui e ali se ouvia dizer que o fabrico em massa do baratucho Cinquecento fora combinada pelo Vaticano e os Agnelli, pois na posse de um carro que podiam pagar, os operários estariam mais inclinados a ir para a praia do que passarem horas aos gritos em comícios e manifestações.

O senhor Altino escutava, às vezes parecia forçar um sorriso, durante algum tempo julgámos que tivesse aceitado a teoria da conspiração entre a Igreja e os Agnelli, tanto mais que na Itália o Comunismo estava de facto a perder terreno. Não tínhamos, porém, imaginado que ele num almoço nos surpreendesse confessando que de facto houvera conspiração, mas "os camaradas italianos" logo no começo tinham reagido com certas medidas. Infelizmente não nos podia dizer quais.