quarta-feira, janeiro 29

Nótulas (75)


É fora de dúvida que a escrita tem um poder curativo. Pelo menos para mim tem. Sobram as  vezes que descarrego num personagem as minhas frustrações ou faço-o pagar por culpas que tenho, tão-pouco acho um problema atribuir-lhe os meus defeitos e perdoá-los depois no tom de pai magnânimo ou padre confessor. Atribuo-lhe o ridículo que em mim descubro, a minha timidez, os hábitos que não consigo descartar mas que passando a ser dele têm desculpa.
Com a escrita já me salvei de maus momentos e dela tenho recebido daquelas satisfações que não há à venda nem o dinheiro paga. Tem-me curado de horas de desalento e frustração, uso-a às vezes para dar bofetadas, mas também me tem feito sentir alegrias e privilégios que sem ela nem por sonhos estariam ao meu alcance.

Mas tudo são ocasiões e noutra altura, com outra disposição, saiu assim:

Nisto de escrita há quem tenha uma quinta, por vezes um latifúndio, mas a maioria, e aí me incluo, tem uma horta. Em geral, quando o digo, as pessoas não gostam. Uns acham pedantice, a outros parece vaidade disfarçada de modéstia, este e aquele aborrecem-se porque consideram que a escrita, aos seus olhos coisa elevada, nobre, não se deve banalizar em comparações que lhe embaciam o brilho.
Mas essa é a minha opinião e por ela me fico. A escrita é a minha horta. Com respeito pelo que faço e como o faço, semeio, lavro, rego, podo, corto uns galhos, queimo umas folhas. Sigo ainda o exemplo do hortelão quando ofereço o fruto ou o ponho à venda, o que só faço quando o julgo maduro.
Estive a pensar estas coisas durante a insónia da noite passada, e num acesso de febre comecei a fantasiar um mail que mandaria ao senhor Eça de Queirós a pedir-lhe conselho e opinião. É que ando azedo. Bem sei que no quintal de alguns nem a couve penca cresce, e que numa quinta ou latifúndio tem de ser grande a lixeira. Mas ó senhoras e senhores!

segunda-feira, janeiro 27

Nótulas (74)


Pode ser que me tenha escapado, mas nos media portugueses ainda não vi referências a Pete Buttigieg, candidato democrata às eleições presidenciais nos EUA e que se distingue pela juventude dos seus 38 anos, mas também por certos aspectos da sua carreira e da sua vida que o podem tornar simpático aos eleitores democratas.
É filho de emigrantes, estudou em Harvard e Oxford, foi analista da McKinsey, mayor de South Bend, veterano da guerra do Afganistão, religioso, homossexual e casado com o seu partner. Os oponentes irritam-se com as generosas contribuições que recebe dos milionários americanos, mas também por ser extremamente inteligente e ter um CV que os deixa muito atrás dele.
Quanto mais não seja difere dos outros candidatos democratas, os septuagenários Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Joe Biden, acentuando essa diferença quando afirma: ‘Porque a isso sou obrigado, a minha é uma visão a longo termo.”

domingo, janeiro 26

Nótulas (73)

A primeira página do último captítulo de Fools, Frauds and Firebrands de Roger Scruton, antes mencionado en Nótulas (65):
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sábado, janeiro 25

Trono de rei e senhor

A recordação vem sem ser chamada, há ocasiões em que se sente como quando era miúda e ia ao cinema para ver os filmes - ela ainda diz “as fitas” –  que não eram tão bonitos como agora, mas por qualquer razão lhe pareciam mais verdadeiros. Devagarinho iam-se apagando as luzes, ficava tudo às escuras e de repente tornava-se personagem, era ela quem vivia aquilo, sentia-se desnorteada quando a história chegava ao fim e as luzes voltavam a acender.
Está virada para a televisão, mas é só pelo ruído, o que lá mostram não lhe interessa e os seus olhos também pouco distinguem. Desde que o Jerónimo faleceu senta-se no cadeirão ao pé da lareira, o cadeirão que para ele tinha sido trono de rei e senhor, mandando dali com grunhidos ou sacudidelas dos dedos que exigiam presteza e obediência, fosse para lhe trazer o correio, os comprimidos, a camisola, ou só para que se aproximasse, despedindo-a com outro aceno, esquecido do que pedira, algumas vezes num berreiro de doido, não fosse esquecer que ali  ainda era ele quem mandava.
Com a pinguita de vinho e o calor da lareira vem-lhe a modorra, começam as visões, é como se voasse no tempo, revive cenas­ que julgava esquecidas, mas logo desperta em sobressalto na confusão de ter duas vidas, aquela em que envelheceu e uma segunda em que se desconhece, onde havia esperança, o tempo não passava, ela para sempre a Margarida de vinte anos e um futuro de alegrias.
Sabe por demais que aquilo não é sonho mas o remorso de se ter sujeitado, escolhido a submissão, sofrendo não ter filhos, perdida a conta dos desmanchos, ele a assistir para ter a certeza de que o não enganava. Escolheu vergar-se, nunca lhe quis mal e são sinceros os padre-nossos que reza pelo descanso da sua alma, só se pergunta que praga lhe rogaram para que tivesse de ser assim o seu destino, aos olhos do mundo sem razão de queixa, penando um vazio como só conhecem os que aceitam viver na sombra, sem vontade própria e normais na aparência, mas movidos pelos cordelinhos que os tornam fantoches, obrigados ao sorriso que trai a cobardia.
Os anos e a fragilidade fazem-lhe sentir que o fim não deve tardar, mas a morte não a assusta, tão-pouco receia o que a aguarda na vida eterna em que acredita, mesmo que tenha de pagar por ter escolhido viver sem vontade própria. Medo de verdade, tão grande que a asfixia, é  o que sente de manhã ao acordar, sabendo que não escapa ao tribunal que tem dentro de si e a obriga a ouvir a acusação, mas nunca lhe lê a sentença.