terça-feira, fevereiro 12

Nunca é de graça


Nunca é de graça

Conhecem-se há vidas, são amigos do peito, a experiência ensinou-lhes que nem as suas famílias nem terceiros podem ser convidados para os seus almoços, pois há pouco quem tenha capacidade ou nervo para aguentar aquelas discussões. Alguns já se têm assustado, não compreendem que entre amigos se chegue a tais extremos de discórdia e a gritar daquele jeito.
Para eles é jogo, fazem-no de propósito, se bem que por vezes ambos se dêem conta de que quase pisam o risco. Mas nessas ocasiões é como quando no ringue aparece o árbitro: aquietam-se, não se encaram, bebem calados, para de repente desatarem à gargalhada. Dois miúdos.
Discordam em tudo o que é possível discordar: futebol, carros, política, mulheres, religião, o presidente Trump, o presidente Marcelo, os pneus Michelin, a Coreia do Norte, o turismo, os vinhos do Alentejo, os pauliteiros de Miranda, o SNS, os helicópteros Kamov, o veganismo, as tatuagens.
No último almoço começaram pelos abusos da padralhada, o Sebastião dizendo que tivesse ele poder sabia muito bem como resolvia o assunto. O Albino, ainda calmo, pondo água na fervura, a lembrar-lhe que essas coisas não são de agora, sempre foi assim. Julgava ele que no Convento de Odivelas, no tempo de D. João V, era só com as freiras? Que não havia por lá miúdos a ajudar à missa?
De costume seria esse o momento da discórdia, mas em vez de fingir de zangado e começar aos berros, o Sebastião, com um sorriso beato, ergueu o copo – ‘À nossa!  - dizendo que não se importaria de ter vivido nesse tempo. Não tanto pelas trezentas freiras, mas pelas madres-abadessas de Odivelas.
- Parece que eram escolhidas a dedo e, segundo consta, espectaculares de corpo, de cara, e boas na cama.
- Também li isso em qualquer parte.
- Não leste nada. Nunca pegas num livro, até desconfio que já nem sabes ler.
Agora sim, agora tinham encontrado o tom e as pessoas já olhavam, a surpresa foi o  sujeito da mesa ao lado desculpar-se, dizendo que tinha ouvido, era historiador e queria confirmar que no Convento de Odivelas de facto só chegava a madre-abadessa quem preenchesse esses requisitos.
- E tivesse língua afiada – acrescentou Sebastião.
- Exactamente. Conta-se que certa vez uma dama da Corte não se quis levantar à passagem da madre-abadessa, e esta lhe disse: - Claro que não se levanta de graça quem se deita por dinheiro.
Sebastião sorriu, o historiador voltou ao seu prato, o Aníbal de cara azeda, baixando a voz: - Vem este com o conta-se! Quem é que conta? Quem estava lá?  

Umas sabem, outras não



Umas sabem, outras não

Compreendo a Esmeralda e admiro a teimosia com que se agarra ao seu sonho, mas é pena que seja pessoa que não quer conselhos.
 Ao contrário dela eu não tive um, tive não sei quantos sonhos, mas cedo os perdi. Por volta dos oito anos queria ser maquinista naquelas locomotivas enormes, pintadas de preto, com fumo a sair da chaminé. Depois apaixonei-me pelos submarinos, e embora só os conhecesse das fotografias e de os ver no cinema, fascinava-me a ideia de navegar num tubo de ferro até ao fundo do oceano. Mas uma tarde, no recreio, bastou um único beijo da Laura para que acabasse de vez com as fantasias e fosse espreitar a porta por onde iriam entrar as boas e más andanças da minha vida.
A Esmeralda era ainda pequenina quando viu um circo na televisão e ficou assombrada, jura que foi como se estivesse alguém a dizer-lhe que aquilo seria o seu destino. Desde esse momento parece mistério, pois quando lê os horoscópios encontra sempre uma alusão à vida artística, a viagens, a aventuras, à fama, ao aplauso.
Já estava casada com o Marcelino quando em ocasiões diferentes duas ciganas lhe leram a mão e disseram o mesmo: via-se nas linhas, era esse o seu destino.
Sabe que será trapezista ou equilibrista, nada com cavalos, ursos, cães ou palhaços. Assistente de malabarista ainda menos, porque não aguentaria que a fechassem numa caixa, ou que mesmo a fingir a serrassem em três partes. Também não se vê encostada a uma tábua, em tremuras e a rezar ao anjo da guarda para que o lançador de facas não falhe a pontaria.
Todos os dias se perde no sonho. Já lhe aconteceu estar no dentista, no supermercado, na cabeleireira, e de repente ouve os tambores, começa a subir a escada de corda, espera até que o parceiro lhe atire o trapézio, agarra-o e sente-se a voar, tudo tão real que baixa os olhos para que ninguém descubra a sua excitação. Infelizmente o Destino não se compadece, mantém-se avesso, obriga-a a esperar.
Ainda namoravam quando lho contou e o Marcelino pôs-se a rir, disse que era maluquice, mas nunca mais falou naquilo. Por isso no passado domingo foi um choque. Tinham-se deitado, começaram na brincadeira, de repente ele deu-lhe um empurrão e virou-lhe as costas. Que fosse para o circo, porque se calhar ia ser boa no trapézio, na cama é que não prestava.
Chorou, amuaram, fizeram as pazes, zangaram-se outra vez quando quebrou o telemóvel. Palavra puxa palavra desmarcaram as férias, ele ontem disse-lhe para ir passar uns dias com a mãe, e depois se verá.

Lagostas, camarões, caviar


Lagostas, camarões, caviar

É homem de pouca intimidade, em geral não perde tempo em conversas, mas de longe a longe Manuel Bonifácio sai da sua reserva, o que logo se adivinha  pela maneira como entra no café, dá dois passos, olha em redor e vai sentar-se à mesa de quem escolheu.
De vez em quando cabe-me essa honra, embora deva dizer que se me pareceu  simpático na altura em que mudei para aqui, ainda há vezes em que o acho aborrecido e picuinhas. Porém, com o passar do tempo fui-me dando conta de que essa sua maneira de ser é a cortina que usa para esconder os estragos da idade.
Ontem à tarde chegou esbaforido, passando o lenço pela testa, a queixar-se  que o ar condicionado pouco fazia e o que a canícula – palavra que ele gosta de usar – estava mesmo a pedir não era cerveja, era champanhe, duas taças de champanhe bem gelado.
- Só que champanhe aqui, num estaminé destes…
Fez um gesto de aborrecimento, pousou a caneca, passado um instante vi-o sorrir como se o que lhe ocorria o divertisse, perguntou se já me tinha contado da festa em Paris, onde estivera quando era rapaz.
De facto tinha, várias vezes, mas o medo de que eu próprio comece a perder a memória torna-me generoso, e disse-lhe que não. Também o mais certo é que seja fantasia, o que pouco importa, pois essa grandiosa festa umas vezes foi em Paris, noutras foi em Luanda – “Aquilo só vendo, aquilo é que era cidade!” – o que não varia é a fabulosa opulência.
Passa por alto o detalhe de como ou por quem foi convidado, o ano, o que então fazia e o que o levou a esse lugar, entra logo nos detalhes, pois ficou de boca aberta, porque aquilo era um luxo como só se via no cinema, muitos homens de smoking, as mulheres com vestidos caros, tudo alta-roda. E então o bufete! Arregala os olhos para melhor dar ideia do que lá havia e de modo a que eu, enfeitiçado pelo seu entusiasmo, seja também capaz de “ver” a cornucópia – outra palavra sua favorita – do que ali tinham de lagostas, camarões, pâtés, caviar, champanhes, tudo luxo, grande abundância!
Chegado a esse ponto vejo-o levar a caneca ao lábios, bebe um pequeno gole, e por instantes dá a impressão de que vai continuar a sua história, dar outros detalhes, mas nada mais diz e fica imóvel, alheado, numa demora tão longa que não me atrevo a encará-lo.
De súbito mostra-se pesaroso e ao mesmo tempo sacode a cabeça, como se a recordação o perturbasse.
- E depois, essa festa? – pergunto, acanhado do seu modo.
Olha-me perplexo, dá  impressão de que o surpreende o estarmos ali.