terça-feira, fevereiro 14

Uma noite em Bolonha

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Tinham-me dito que seria difícil arranjar quarto em Bolonha, mas o recepcionista do hotel, sujeito de bigodinho à Hitler, óculos redondos, anel de brasão, ar de proxeneta mal humorado, detalhava, contando pelos dedos, o que nesse momento havia na cidade de congressos e feiras, exposições, conferências disto, daquilo, daqueloutro. 
Insisti, resmungou ele que não havia vagas. Tornei a insistir, o homem agora a fazer de zangado e impaciente, até que por fim sugeriu que seria melhor ir eu jantar, talvez houvesse alguma reserva anulada.
Comi bem, voltei à recepção, e olha que sorte a minha, anunciou ele jubiloso, cofiando o bigode: logo uma das suites de luxo. Ao preço daria um jeito, falávamos disso depois, e não precisava de assinar ficha. "Buona sera!"
Salão, grande quarto, grande luxo, bar bem fornecido, muito mármore,  dourados no banheiro. Acalmada a surpresa fui-me a investigar. Havia ali jornais em três línguas, livros de Economia, um guia de Kiev.
No primeiro guarda-roupa que abri abriu-se-me também a boca: vestidos, saias, casacos de peles. Nas gavetas, adereços e roupas de mulher, sapatos caros, coisas de luxo. Devia ser pouso de dama de alto coturno e itinerante, o sacaninha da recepção aproveitando a oportunidade para fazer uns cobres.
Sentei-me a beber Glenfiddich 15 Year Old e, distraído, folheei os álbuns que estavam sobre a mesa. Fotografia erótica de Helmut Newton e Mapplethorppe. Vistas da Calábria. Imagens de Veneza a preto e branco, de Ferruccio Leiss, um fotógrafo que desconhecia.
Acabei o uísque à janela, satisfeito por me sentir agasalhado, olhando distraído os relâmpagos e o temporal sobre a cidade, remoendo sobre o que aconteceria se a dama em questão de repente entrasse e desse comigo.
Sorrindo da eventualidade, abri outro armário. Depois o seguinte, respirando fundo umas quantas vezes. Peças de cabedal fino, cintos de prata, botas altas com ponteiras de metal, um buda de marfim, uma máscara africana, um par de halteres.
Repus tudo cuidadosamente. Dormi mal, tive pesadelos, sobressaltei quando a empregada veio com o pequeno-almoço e, sem estranheza, me deu os bons-dias e os jornais que a "inquilina" recebia.
O recepcionista do bigodinho informou-se do meu bem-estar, disse que sem recibo eram cento e oitenta dólares, trezentos com. Não aceitava cartões de crédito, os dólares cambiava-mos ele.
Isto foi no século passado, e era puxadito, mas não refilei. O alojamento tinha sido confortável, a surpresa valia o dinheiro.
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Publicado na DOMINGO CM

segunda-feira, fevereiro 13

Sal na ferida

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Agora que o Ministro mente, o Primeiro-Ministro esquece, o Presidente da República não se ouve, recordo esta triste confissão, feita aqui pela primeira vez seis anos atrás, e que tantas vezes repito, incapaz de esquecer a mágoa.


Precoce na leitura, cedo comecei a sonhar e a ter pena do meu país. Aprendi que lá longe havia outros sem medo nem miséria, de leis justas, menos desigualdade, menos desespero, os seus cidadãos e governantes mais interessados no futuro do que em glórias passadas.
Parti, quando a minha hora soou. Ingénuo bastante para me maravilhar, mas cedo consciente do fosso entre a realidade que observava e os sonhos que tivera. Além fronteiras não havia paraísos, mas sociedades onde a esperança de melhoria era um facto, a desigualdade menos gritante, a repressão inexistente, a liberdade um direito sagrado. Fui vendo, estudando, comparando, e continuei a ter pena da terra onde nasci.
Não me entusiasmou depois o florescer dos cravos, e espero o investigador de hombridade que faça a barrela desse momento histórico, mostre os interesses que a ele levaram, ponha nome nos fantoches e em quem segurava os cordéis.
Passaram os anos. Sentindo mais funda a pena, vi o meu país de mão estendida. Com espanto vi-o depois a esbanjar o que não tinha, governantes e governados dando o espectáculo da mais incrível pelintrice, de uma inconsciência que só dos pobres de espírito se espera, tomando por realidade o país de Cocagne.
Vivendo no conforto de uma sociedade rica, justa, bem organizada, materialmente não sofro com a desgraça daquela em que nasci, mas nem por isso me dói menos o esfregar sal na ferida.
Curioso povo, o meu, onde gente supostamente séria e competente enrouquece a gritar que as dívidas dos países não se pagam. Para que fingem? Com que fim iludem? Pagam, e com língua de palmo, que quem dita os termos não é o caloteiro, mas aquele que tem numa mão a faca e o queijo, e na outra a corda com que o enforca.
Com tristeza o digo e consolo não sinto: na minha idade é nula a esperança que tenho de ver Portugal sair do atoleiro e da miséria. Resta-me o sonho de que os que agora são jovens, e os que vierem, construam um país de que se possam orgulhar e não lhes doa como este a mim dói.

segunda-feira, fevereiro 6

A ameaça de Wilders

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Com justificada razão anda a classe política holandesa aflita com o que pode vir a acontecer nas eleições em Março, pois nunca foi tão grande a expectativa, nem tão complicado o prognóstico.
É que não se trata apenas da probabilidade de o PVV, o partido de Geert Wilders, alcançar uma estrondosa vitória, mas também por ser grande a insatisfação para com os políticos e a desconfiança dos eleitores.
Dentro ou fora do governo, seguros de si e indiferentes ao que mostram de desdém, afirmam os políticos holandeses, e também o geral dos media, que o eleitor não merece confiança. É um tonto (sabem-no eles bem) que acredita em promessas mirabolantes, se mostra incapaz de pensar pela própria cabeça, e “deve ser protegido contra as escolhas que faz.”
Agora acontece que se há país onde os cidadãos tomam a política a sério, esse é de certeza a Holanda. Nos anos 70 um pouco mais de metade dos cidadãos dizia-se satisfeita com as instituições e o seu funcionamento, essa percentagem alcança actualmente 75 porcento. E desde há quinze anos para cá, nas  legislativas mantém-se estável o número de abstenções, 25 porcento, um resultado apenas ultrapassado nas eleições em países diminutos como o Lichtenstein ou o Mónaco.
Mas se nas legislativas de Março não é o funcionamento das instituições que está em causa, o mesmo não se pode dizer a respeito das consequências da atitude elitista do governo e dos partidos que, segundo as previsões, irão ser confrontados com uma novidade: um grande número de eleitores deixará de votar “tradicionalmente”, isto é, seguindo o exemplo da família, os conselhos da religião, ou obedecendo às directivas dos sindicatos.
Todavia, qualquer que seja o resultado, é improvável que uma vitória de Wilders tenha como consequência a sua ascensão à chefia do governo, pois não seriam poucos os obstáculos a enfrentar, começando pelo facto do seu partido, que continua a ser “excomungado” pelas elites, não dispor de quadros suficientes.
Dada essa “excomunhão”, também nenhum partido se mostra disposto a coligar-se ao PVV, o que pode vir a criar uma situação pouco democrática, a de o partido vencedor se mostrar incapaz de corresponder à vontade dos eleitores.
Na hipótese de que tal venha a acontecer, isso confirmaria o sentimento de que a elite pouco caso fará do resultado das eleições, o que já levou Wilders a declarar: “Se ganharmos e nos puserem de lado, quem se vai queixar de que sairemos à rua a protestar?”
Essa é a possibilidade que, com razões de sobra, a muitos assusta.
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Publicado na DOMINGO CM.