sexta-feira, março 23

Pausa

O timoneiro viaja amanhã para a terra onde nasceu, pelo que durante coisa de uma semana esta barca suspenderá a navegação.

Partida

Vou amanhã para Portugal. Desde há alguns anos a véspera de cada viagem para lá, ou de volta, tornou-se involuntariamente num momento de melancólica reflexão sobre a minha pertença a dois países, a duas línguas, a duas sensibilidades, a duas tão diferentes maneiras de existir, agir e pensar.
Umas vezes digo-me que enriqueci o espírito, noutras tenho a impressão de que me amputei. Ora me regozijo com as vantagens deste duplo pertencer, ora me amarfanha a certeza de que em parte nenhuma pertenço por inteiro. Tenho consciência de que constantemente ganho e perco, mas sem que o ganho traga satisfação ou a perda se mostre irremediável.
Talvez por isso só na língua materna encontro a estabilidade que no resto me falta. E parafraseando Pessoa - “A minha pátria é a língua portuguesa” - de verdade ela para mim não é apenas idioma, modo de expressão, mas como que um lugar, por vezes mesmo um refúgio.

quarta-feira, março 21

E-mail

Mesmo sem lhe mencionar o nome, falar dele aqui causa-me desconforto. Porque é homem bom, atencioso, prestável. Defeitos com certeza terá, mas no trato só se lhe descobre o de comer em quantidades pantagruélicas.
O que agora lhe aponto mal se pode chamar defeito, é antes o desvio de uma qualidade, o desejo que tem de pôr os outros ao corrente daquilo que o interessa.
Antigamente fazia-o por carta. Uma ou duas vezes por mês, lá vinham os extensos relatos acompanhados de citações e recortes de jornais. Mas desde que descobriu o correio electrónico, a sua sede de comunicar passou de bimensal a diária. Tudo o que lhe agrada, comove, assusta ou preocupa, comunica-o ele de imediato, juntando em anexo artigos e fotografias, em quantidade tal que o computador leva eternidades a receber os megabytes.
É também estonteante, porque o seu interesse abrange desde as profecias de Nostradamus à crueldade contra os bichos, da independência de Timor à dosagem da vitamina C, da certeza que o mundo acabará em 2017 aos monges voadores do Tibet. E mais, cansativamente mais.
Depois, ou porque quer assim, a mostrar o vasto círculo dos seus corresponentes, ou porque desconhece como eliminá-la, as suas mensagens terminam com a lista de todos endereços para onde as envia.
No tempo em que usava a máquina de escrever, a fotocópia e o correio, suponho que as não mandasse a mais de dois ou três. Mas o computador abriu-lhe perspectivas inesperadas. Recebido a noite passada, o seu último e-mail, alargando-se em considerações sobre a pena de morte, a economia do Irak, os livros de Paulo Coelho, os malefícios da utilização de navios-fábricas na pesca oceânica, a eficácia da Coca-Cola no tratamento da diarréia, o escuro site de Dolce & Gabbana (http://www.dolcegabbana.it/ ), conta nada menos de sessenta e um destinatários. Entre eles o presidente Putin (president@kremlin.ru) e um espiritosanto@angola.com.

domingo, março 18

Cântico dos Cânticos

Grava-me como selo em teu coração,
como selo no teu braço,
porque forte como a morte é o amor,
implacável como o abismo é a paixão,
os seus ardores são chamas de fogo, são labaredas divinas.

Está no Cântico dos Cânticos (Cant 8,6). Talvez que no vasto mundo e neste momento da noite, em vez de estar a lê-las na Bíblia como eu, alguém sussurre estas palavras a quem ama.

sexta-feira, março 16

Doutores

Para mudar de assunto ou pôr fim a um silêncio insólito, às vezes para despoletar uma situação incómoda, ocasiões há em que me vejo no papel de contador (quase) compulsivo de anedotas.
Na realidade considero as boas verdadeiros microcontos, razão porque deixo aqui duas das minhas favoritas. Com desculpas a quem já as conhece.

Deveria ser um velório como de costume, com prantos e soluços, olhares tristes, abraços de pesar, boas recordações do defunto.
A gente era muita, por isso mais inacreditável e doloroso se tornara o silêncio geral. De facto, pelo extremo das suas más qualidades, o passamento do sujeito tinha sido um alívio para todos os presentes.
O uso mandava, mas como elogiar o filho da puta? Até que finalmente alguém suspirou: - O irmão era muito pior.


O lavrador siciliano tinha comprado um horta. Preocupava-o o ter de registá-la, mas o notário acalmou-o: a acta era coisa simples.
No dia seguinte a papelada estava pronta.
- Assine aqui.
- Eu bem pensava... Vamos ter um problema, porque sou analfabeto.
- Problema nenhum. Faça nesta linha uma cruz, é a assinatura, o mesmo que o seu nome.
O lavrador risca duas cruzes. O notário irrita-se:
- Homem! Era só uma cruz! O nome.
- Bem ouvi, mas uma é o meu nome, a outra é Dottore.

quinta-feira, março 8

Comadres

Dava-se-lhes o nome de cronistas. Escreviam nos jornais uns textos curtos, ora comentário, ora observação ou relato. O tom era o da seriedade, a prosa cuidada, o proveito duplo, porque o lê-los era uma aprendizagem e os seus temas obrigavam à reflexão.
Sob a influência generalizada do inglês, desde há anos que se passou a chamar-lhes colunistas. O tom agora é ligeiro, a prosa descuidada, no melhor dos casos banal a temática. No pior descem à mexeriquice, e quando a mexeriquice falta escrevem uns sobre os outros. “Como dizia fulano na sua coluna de ontem... A perspicaz análise que hoje se lê na coluna de sicrano... ” *)
Assim cavam os jornais a própria cova, servindo-nos, requentado, o noticiário que ontem à noite vimos na televisão, enchendo o resto das páginas com textos banais e fotografias inúteis.
O jornal, que no passado a opinião pública considerava um cavalheiro, tornou-se uma comadre.
______________________________________

*) Interessante desenvolvimento: os bloguistas vão por caminho igual. Em bom número de blogs nota-se uma demasia de abraços, parabéns, citações, palmadinhas nas costas, com o correspondente e inconfundível cheiro a capelinha.

quarta-feira, março 7

Larachas

Exceptuando um ou outro pesadelo, os meus sonhos quase sempre me têm sido uma excitante forma de exploração psíquica, tanto mais que em geral guardo deles recordações vívidas.
Nessa muito presente lembrança reside talvez a origem do bizarro fenómeno a que por vezes me sinto sujeito. Acontece que durante certos sonhos tenho consciência de sonhar de novo sonhos anteriores, o que me transporta para uma inquietante duplicação da memória, do sentido da realidade e do eu, e ao mesmo tempo me impede de saber se, como suspeito, apenas uma parte de mim sonha, enquanto outra espreita insondáveis mistérios.
"Larachas", comenta um conhecido a quem falo disto. E embora saiba que não me convence, tenta acertar uma mocada definitiva na minha fantasia, acrescentando: "Isso provavelmente é a consequência de refeições pesadas. Uma questão de química."

domingo, março 4

Sessões de autógrafos

Nijmegen. A mesinha com os livros para autografar está à direita da entrada. Sento-me e agora é esperar. Inconfortável, a posição de manequim de vitrina. As pessoas vão chegando, olham e compram, ou só olham. Há os tímidos, que de longe observam a cena e depois de alguns rodeios se aproximam como que por acaso, afectando desinteresse.
Chega mais gente. Alguns arriscam um cumprimento, palavras de apreço, e finalmente surge o inevitável tarado. Com o ar decidido de quem sabe ao que veio, anuncia-me que quer comprar um exemplar, mas sob uma condição: que eu escreva numa das páginas em branco um comentário pessoal, de preferência irónico ou malicioso, sobre um escritor vivo.
Respondo-lhe mal humorado com um redondo não. A tentar convencer-me, o homem diz que estranha a minha atitude, pois até à data escritor nenhum recusou satisfazer o seu pedido. Atente eu que a negativa significa que não estarei presente na sua interessante, e um dia valiosa, colecção de volumes comentados.
Dá-me vontade de mandá-lo àquela parte, mas o lugar e a presença doutros obrigam a que me contenha. Repito-lhe que não e de súbito é como se estivéssemos numa feira:
- Palavra que não quer escrever? Só umas linhas? Olhe que se arrepende. Vou-me embora e não compro livro nenhum.

Uma espécie de Feira do Livro num dos canais de Amsterdam. Estou sentado entre uma parede e uma mesa com alguns livros meus. A multidão passa, ininterrupta. De vez em quando alguém pára, folheia, olha os livros, encara-me, sorri. Um diálogo de surdos-mudos.
Uma mulher agarra um livro, abana com ele a chamar a minha atenção e pergunta:
- O senhor fala holandês?
No mesmo momento em que lhe respondo ela pousa o livro e, sem me encarar nem reagir, volta-me as costas.
Um casal. Acenam de longe, sorrindo com simpatia. Aceno e sorrio também. Param, voltam atrás, o homem grita por cima das cabeças:
- Hoje de manhã comprámos um livro seu.
- Obrigado.
- E vamos lê-lo.
Que responder?

No mesmo lugar, à mesma mesa. Dois sujeitos aí duns trinta anos param, folheiam distraidamen­te os livros - que procurarão ao fazer correr assim as páginas? - pousam-nos, pegam noutros. Um deles abre um livro meu, olha a capa, revira-o e, apontando-me como se eu fosse uma figura de cera e não um ser vivo ali a metro e meio deles: - Já leste alguma coisa deste gajo?

Leiden. Imóvel e silenciosa, uma mulher observa-me há minutos. Aquilo começa a tornar-se desagradável. Levanto-me para alcançar o livro que um rapaz me entrega para autografar, e nesse momento a mulher desperta, sorri, e diz-me contente: - Enganei-me! Julguei que fosse mais alto!

Amsterdam. “Mercado das Letras” no Bijenkorf. Somos mais de cinquenta, sentados atrás de mesas onde os nossos livros se empilham. O público passa durante três longas horas. Incessante­mente. Milhares de rostos. De vez em quando alguém folheia um livro, compara o retrato do autor na contracapa com a cara da realidade, ou pede um autógrafo, tira uma fotogra­fia.
À minha direita uma senhora especializada em obras de etiqueta. À minha esquerda uma escritora americana diz que não aguenta tanto tempo sem fumar, e fuma às escondidas com uma satisfação de criança maliciosa, soprando o fumo para o soalho.
Um coleccionador não quer apenas um autógrafo, mas pede - não pede, exige! - também um desenho. Como não quero, nem sei o que desenhar, ele diz que nesse caso também não precisa do autógrafo. Assim seja.
As balaustradas dos andares superiores estão cheias de um povo que se contenta com olhar para baixo e ver tanto crâneo de literato.

- Diga-me uma coisa: aquelas peripécias dos seus contos aconteceram mesmo?
Santa inocência! Esperar que um escritor escreva a verdade, quando para ele o que mais conta é a arte. E na arte a verdade não passa de um acessório menor.

sábado, março 3

Prefácios

Se há tarefa que, garantido, me põe de mau humor, é a de escrever prefácios. Dois, desde o princípio do ano. Ambos pelo medo de parecer grosseiro ao recusar um favor a quem tão abertamente o pede. E vá de pensar frases torneadas de modo a que as opiniões pareçam objectivas e os elogios sinceros. Esforço que resulta em dores de cabeça, raivas surdas, em pontapés no vazio e promessas solenes de nunca mais.
Um álbum de pintura. Quadros que nada me dizem, quanto mais os olho, mais nevoentas se me tornam as ideias. Sentindo-me tolo e, pior, hipócrita. Alinho frases sobre a harmonia dos coloridos do artista, a tensão que soube emprestar aos volumes, “o refinado tratamento do chiaroscuro, com reminiscências de Caravaggio e Rembrandt.”
Um livro de reportagens fotográficas. Retratos. Cenas de rua. Fotografia inexpressiva, de efeitos pretensiososos. Para não cair de desespero e frustação, apoio-me em Stieglitz, Kertész, Atget, Cartier-Bresson, ao mesmo tempo que olho de lado, involuntariamente receoso de ouvir já as gargalhadas que vão dar os que por acaso lerem as minhas asneiras.
O prefaciado, esse de certeza vai gostar. Cumprimentos, merecidos ou não, comparações com os grandes, tudo lhe será bálsamo. Virá depois citado nos anúncios e nos cartazes que evitarei olhar, para que não se reacenda a vergonha do meu fingimento.

sexta-feira, março 2

Entretém

Até à data a minha memória funciona sem que dela tenha razão para me preocupar, pois mostra-se pronta a fornecer os dados, os nomes, as vivências e as recordações que lhe peço.
Tenho, contudo, a suspeita de que esta memória é diferente daquela com que nasci e durante tantos anos me serviu. Não digo que me negue serviço ou se tenha tornado lenta, mas como que se lhe acrescentou uma dimensão crítica que antes não possuía.
Assim, quando por vezes, saudosista, quero relembrar uma data, uma conversa, é como se no íntimo uma voz se interpusesse, perguntando com rispidez que necessidade tenho desssas informações. Se me tornei incapaz de separar o trigo do joio, o importante do banal. Se para mim, em vez de uma função, o recordar passou a ser um jogo, um entretém.

quarta-feira, fevereiro 28

Diários

Há diários importantes, e os que são apenas interessantes. Há-os íntimos, alguns dolorosamente francos, outros mascarados. Os que são escritos para ferir, e os que são escritos para recordar.
O meu, suponho, cabe mal nas categorias acima, pois menos que uma anotação de factos e pensamentos, o vejo, sobretudo, como um anseio de conversa.
A conversa que me imagino a ter com alguém de carne e osso, numa dessas amizades com empatias sincrónicas e harmonias duradouras. Amizades ideais que de certeza alguns ressentem e mantêm a vida inteira, mas que a mim não couberam. E nesta altura é improvável que me venham a caber, pois a idade - pelo menos no meu caso - à medida que aumenta a impaciência e o sentido crítico, vai reduzindo a capacidade de desculpar.
Que isto é meio caminho andado para a solidão, sei-o de há muito. Mas tanto quanto dela tenho experiência, também aprendi que os males da solidão são relativos, pois com livros e fantasia é que se criam mundos à medida do nosso sonho. O que não impede que o sonho seja faca de dois gumes: nas satisfações que dá pesa sempre a impossibilidade e, ao acordarmos dele, a ânsia do que se não possui ou se não alcançou dói ainda mais fundo.

sábado, fevereiro 24

Ingenuidade e igualdade

Questão de boas maneiras, empatia, concordância de opiniões, num primeiro contacto oferece-se-lhes aquele intimidade espontânea que vem do coração. Alguns compreendem-no, reagem do mesmo modo, e assim nascem, senão amizades, pelo menos aquelas relações que tornam agradável a vida em sociedade.
Outros, porém, vêem na simpatia que inesperadamente recebem uma tibieza e, talvez por instinto animal, logo em coisas diminutas dão mostras de nos quererem torcer, dominar.
De começo envolvem as suas manipulações em sorrisos e cortesias, mas à medida que avançam permitem-se umas gotas de veneno, uns toques de sarcasmo, um arranhar de unhas. Até que ousam passadas mais largas: escreveste isto, era melhor teres escrito aquilo; fizeste assim, devias ter feito assado... É o momento de travar e, porque sempre vão longe demais, da irremediável separação.
- Mas vocês eram amigos!
- Penso que não. A verdadeira amizade pressupõe ingenuidade e igualdade.

sexta-feira, fevereiro 23

Amar menos

Ela diz:
- Sinto que o amo menos agora do que há três anos, quando voltámos para a Holanda.
Aceno compreensivo, mas no íntimo pergunto-me: entre amar menos e já não amar, qual é a diferença?

quinta-feira, fevereiro 15

Pessoa? Personagem?

O que foi alegria, excitação, entusiasmo, tornou-se aborrecimento e desânimo. Hoje detesto viajar. Entro nos aeroportos com a fúria impotente de quem se vê obrigado a ser do rebanho.
As intermináveis esperas, o ar de artifício que toda aquela gente tem, uns disfarçados de turistas, outros a fingir de homens de negócios, de aventureiros, mais os papalvos, os aflitos, os de ar blasé... Espectáculo deprimente.
Entro no avião e raro escapo a um pensamento macabro: antes de me sentar, olho em volta, examino os rostos, as expressões, pergunto-me se me importaria morrer na companhia de semelhantes figuras.
A resposta é um terminante sim, e tem por consequência a reconfortante certeza de que Deus, para me chamar a si, escolherá outra ocasião e companheiros menos trombudos.
Um mês de ausência não é uma eternidade e, contudo, mudar em poucas horas de Estevais para Amsterdam, de uma casa para a outra, mudar de língua, de ambiente, hábitos, horários e obrigações, dá-me a impressão de que, pelo menos uma destas duas vidas que vivo não é real, mas um papel de teatro. Que numa delas não sou pessoa, apenas personagem. Alguém que, involuntariamente, de si mesmo cria um duplo e o vê agir sem compreender que razões o movem, ou a que fim se dirige.

quarta-feira, fevereiro 14

Dois momentos

Ele aperta os lábios, como quem fala em itálico, e lecciona que no blog e no post são elementos essenciais a rapidez, a concisão, o punch. Com a minha idade eu deveria saber isso. Textos como os que aqui ponho são demasiado longos, dum conteúdo irremediavelmente arcaico.
Respondo-lhe, frouxo, que não está no meu poder rejuvenescer-me. Esqueci-me de acrescentar que cada pássaro canta conforme o bico que Deus lhe deu.
…………………..

Imre Kertész (Nobel 2002) entrevistado na TIME desta semana:
"What is your workday as a writer like? If you recorded the day in a life of a writer you would be disappointed. He makes coffee, he looks out the window, he does everything but write. But despite these everyday failures, something still comes out of it."

sábado, fevereiro 10

No século XX Anno Domini (1)

Sentado na moleza do departamento comercial da embaixada do Brasil (Vondelstraat 10 – Amsterdam), ignorei a Holanda, fui uma vez de corrida ao Rijksmuseum, outra a Volendam, a aldeia de pescadores que passa por turística; frequentei Zandvoort, o Estoril de Amsterdam, onde nesses tempos distantes (1956) o hotel Bouwes oferecia aos domingos Thé Dansant et Variétés.
A nossa preocupação maior era a fragilidade do câmbio dos cruzeiros em dólares; as ocupações mais pesadas os jantares com o embaixador; os nossos pânicos as visitas da embaixatriz, que sabia de Arte e a quem, por turno, tínhamos de acompanhar aos antiquários e aos leilões.
Preguiçoso, desinteressado, considerando a minha estadia de pouca dura, perguntava de vez em quando aos colegas, que estavam aqui há anos e deviam saber:
- Mas afinal, como é a Holanda?
Eles, mais ingénuos do que eu supunha, explicavam, simplificando: as holandesas dividiam-se em duas categorias, as com quem se tinha ido para a cama e as que estavam para ir; os holandeses numa categoria única: a dos bananas. O país, uma maçada. A comida, um nojo.
Acrescentavam depois a Família Real - "a mais rica do mundo!"- a Shell, a Philips, a Unilever, os diques…
Temendo o frio, desconfiando da língua rebarbativa e do ar fechado dos passantes, financeiramente esfolado por senhorias que tinham elevado a arte de esfolar à suprema perfeição, limitava-me ao convívio dos colegas. Divertia-me com a basófia do chefe, contando como em Brasília o presidente Kubitschek lhe tinha batido no ombro, dizendo : ‘Éscuta, Jorge!...” Ria, como quando acompanhei o cônsul a um hotel para organizar uma festa, e ele perguntou ao homem que nos atendeu:
- Quem é você?
- Sou o recepcionista.
- Chame o director! Eu só falo de governo para governo!
Havia ainda o Cunha que, depois de vinte e cinco anos nas Águas e Esgotos de Petrópolis, tinha sido ‘empistolado’ para a embaixada em Lisboa. Mas o ‘pistolão’ enfraquecera com a mudança da política, e o seu calvário, arrastado por Madrid e Génova, ameaçava durar em Amsterdam.
Como o ministro não se condoía, nem o transferia para Lisboa, onde o esperava uma Rosa Simões, remetia ele, em cartas registadas e express, fotocópias dos atestados médicos que garantiam a veracidade de dois enfartes, acrescentando-lhes em maiúsculas a tinta vermelha: ‘V. Exa. ficará com a minha morte na consciência!’
Assim, no centro de Amsterdam, eu "vivia" de facto no Brasil, ocupando horas a escrever aos amigos, a rabiscar de longe a longe um relatório, a alinhavar romances que nunca terminaria, bebendo cafés sem conta, exausto quando por volta das cinco saía para a ronda obrigatória dos drinks, das recepções e dos jantares.

sexta-feira, fevereiro 9

Amigo perdido

São três da tarde e faço compras na vila. Ao acaso das minhas voltas passo por um desses cafés penumbrosos, tristonhos, daqueles que se pergunta a gente como conseguem sobreviver. Olho para o interior no instante da passagem. A cena grava-se-me indelével, continua a mortificar-me.
Ele é o único cliente e está sentado a uma mesa no meio da sala, meio de costas para a rua, na mão o copo de cerveja que leva à boca. Atrás do balcão o proprietário enche outro copo.
Mais tarde hei-de vê-lo na praça, num caminhar incerto, o seu rosto com a cor arroxeada dos alcoólicos inveterados. Sob o braço segura a pasta com que se dá a ilusão de que nela guarda os processos que irá levar ao tribunal.
Foi brilhante, mas agora é advogado só de nome. Causas não tem. Quem o conhece acena de longe, evita a sua companhia. Solitário, violento, vai de café para café, de copo para copo, até que ao fim do dia, comatoso, se arrasta para casa. Triste sina para um amigo de quem tanto se esperava, e aos quarenta e oito anos se tornou um farrapo humano, um fantasma de si mesmo.

quinta-feira, fevereiro 8

Corno cínico

“Os cornos são como os dentes: doem ao crescer, mas depois é com eles que se come."

terça-feira, fevereiro 6

Outro aniversário

Curiosa sensação, a dos aniversários. Ver-me velho, quando tenho tão presente a memória do tempo em que os trinta e três anos que Cristo contava, quando o crucificaram, me pareciam uma idade de Matusalém.
É essa uma das poucas vantagens que a velhice tem: poder viajar no tempo. Não como o faz a juventude, com o privilégio de ansiar pelo futuro, mas ironicamente em marcha atrás. Recebendo lições de modéstia, deixando pelo caminho as certezas que o não eram, rindo de ter tomado a sério a palavra eternidade.
A caminho dos setenta. A idade que ambos os meus avós não alcançaram, e a dois passos da de meu pai quando faleceu. Contas que faço involuntariamente, e que são ao mesmo tempo temor e exorcismo, a busca de não sei que garantias de precária sobrevivência. A sopesar se me restam ainda cinco, dez, quinze anos, ou se amanhã - nunca hoje, sempre amanhã! - a Parca se canse de dobar o meu fio e o corte duma tesourada.

Que terá sido?

O estranho modo com que certa gente entra e sai da nossa vida. Não falo dos amigos que se perderam de vista, dos que se nos tornaram indiferentes ou inimigos, mas daquelas pessoas que como que nos assaltam com a sua amizade e são tudo empatias, concordâncias, atenções, carinhos. Até ao dia em que, sem razão aparente, parecem levar sumiço.
Encontrámo-nos depois por vezes numa rua, num café, ao acaso duma cerimónia. 'Há que tempos que não nos vemos!' Embrulham-se em desculpas frouxas sobre as andanças da vida, os afazeres, complicações. Mas a pergunta fica: ao que é que não correspondemos? O que é que nos quiseram dar ou queriam receber que nos escapou? O que é que não somos, e eles julgaram que éramos? O que é que em nós lhes meteu medo?

segunda-feira, fevereiro 5

Aniversário

Foi o dia em que, oficialmente, entrei na velhice, mas nem eu pranteei nem os céus trovejaram, e o dia passou como a maioria dos dias passa: corriqueiro e calmo.
Se o corpo ou o intelecto funcionassem mal, se a minha alma andasse desvairada, se um drama ou a miséria me ameaçassem, eu teria razões de queixa.
Como nada disso acontece, só tenho motivos de inquietação: o de ignorar donde venho, o de não saber quem sou, o dar-me conta de como o tempo de uma vida é um instante irrisório, a incerteza do que será o meu destino, o mistério do que fica para lá do fim.

Cigano

Poucos haverá de feições assim aristocráticas e um olhar que parece indiferente à hostilidade do mundo. A roupa também o não denuncia, porque da que lhe dão por esmola nas casas abastadas, ele escolhe infalivelmente a que, pela cor e o corte, o tornam quase elegante. Usa chapéu de aba larga debruado a couro, boas botas.
Mau grado tudo isso José Lindo é inegavelmente cigano, e o mais trágico de todos, pois vagueia sozinho desde que muitos anos atrás, por razões que nunca disse, a sua família e a tribo o expulsaram. Na nossa aldeia pára às semanas, talvez porque não precise de ir de porta em porta a pedir esmola, pois quando chega a hora há sempre uma mulher que lhe leva um prato de comida ao banco ou à soleira onde ele se senta amodorrado.
Dorme onde melhor lhe calha, ao ar livre, debaixo dos alpendres, nos palheiros; se o tempo fica mau abriga-se numa casa abandonada e acende lá uma fogueira.
A velhice e as agruras devem-no ter transtornado, com certeza a razão porque deixou de fazer os cestos com que ganhava alguma coisa. E pouco fala. Tem alturas em que nem sequer responde a quem lhe dá as boas horas.

domingo, fevereiro 4

Circo

Encostaram às traseiras da capela uma roulotte caduca, as paredes enfeitadas com bonecos pintalgados. Uma fieira de lâmpadas vermelhas faz um arremedo de arco festivo. Pergunto aos vizinhos do que se trata e eles respondem-me que é um circo. Depois, com um sorriso malicioso:
- Não vá julgar que é como os de antigamente. Este é moderno. No princípio fazem um bocado de ginástica, mas depois abrem as goelas à música e ficam as gajas a cantar e a dançar. Meio nuas. Com um panito a tapar-lhes as vergonhas. Venha logo à noite e vai ver que é como na cidade.
Prefiro não ver. Quero guardar inteira a recordação de quando os saltimbancos vinham com uma caravana de burros carregados de atributos e, no mesmo lugar, espetavam os paus em que firmavam o trapézio. Depois saltavam, giravam, contorciam-se, tiravam dinheiro do nariz das pessoas, cuspiam fogo, faziam a pirâmide humana...
Não quero ver mulheres meio nuas a cantar e a dançar. O que nunca mais acontecerá, e eu gostaria de voltar a ver, era aquela menininha que teria então a minha idade e, gracil­mente, erguia um arco no ar, por onde um cão saltava cada vez que ela lhe gritava: 'Allez, hop!'

Gondarém

Gondarém. A matar saudades, vou-me hospedar na casa em que passei os anos melhores da adolescência, agora transformada em estalagem. E, como faço das outras vezes, peço que se está desocupado me dêem o quarto do torreão, que foi o meu.
Entro nele com a esperança sempre repetida de que, estando ali, verei um dia abrir-se de par em par as portas que me impedem de ver claro no meu passado. Esperança vã.

sábado, fevereiro 3

Heavy metal

… Purcell, Monteverdi, Bach, Mozart… Nomes que involuntariamente me ocorrem durante um concerto de Pergolesi.
Divago.
Desde a invenção do gramofone podemos ouvir mais concertos em dias, do que antes ouvia um músico durante a vida inteira. Mas que benesses nos vêm das imensas e esplêndidas possibilidades que entretanto criámos?
… Funk…Grunge…Hiphop… Heavy metal…

sexta-feira, fevereiro 2

Johnson

"A gentleman who had been very unhappy in marriage, married immediatly after his wife died: Johnson said, it was the triumph of hope over experience."

in Boswell's Life of Johnson

Pavilhão Chinês

Fim da tarde. Chovisca. Deixo o Jardim de Alcântara e subo até ao Pavilhão Chinês.
Sento-me perto da porta, bom lugar para melhor me entreter com a colecção de bric-à-brac. Peço uma cerveja.
Pouca gente. De ar absorto, uma encarnação de pintor boémio fuma cachimbo, faz caretas de desdém, sopra o fumo para o tecto. Num canto da sala duas lésbicas. No canto oposto uma rapariga sueca bebe Campari e fuma. Digo rapariga, porque na idade a que cheguei toda a mulher com menos de quarenta anos é rapariga; e sueca, porque o loiro dos cabelos, as suas feições, o rosto, o corpo, a maneira desenvol­ta, e o Aftonbladet aberto sobre a mesa, razoavel­mente confirmam a nacionalidade.
Olho distraído os cartazes, as vitrinas, o cubículo ao fundo donde vem o som de riso abafado. Um tilintar de copos.
A sueca vai-se embora. As lésbicas trocam carícias, indiferentes ao olhar zombeteiro do empregado. Uma delas, alta e magra, vestida com um masculino fato preto, gravata idem, cabeleira de azeviche, maquilhagem esbranquiçada, tem um ar de fantas­ma teatral. A companheira, rechonchuda e coquette, é do tipo sofredor.
Bebo outra cerveja. Dois alemães de meia idade espreitam à porta, arriscam uns passos na sala, olham em volta com o ar de quem teme ter entrado por engano num lugar de má nota, e desaparecem silenciosamente.
Pago e saio atrás deles. Parou de chover. Volto ao jardim.

quarta-feira, janeiro 31

A lei

Por vezes tenho invejo de meu pai. Circunstâncias várias fizeram com que a sua vida não fosse feliz, mas pelo menos pôde vivê-la de acordo com o carácter que tinha: o seu deus era a lei, a sua missão o fazer cumprir a lei e punir os transgresso­res, o seu gosto maior o de ver a lei cumprida.
Eu não tenho deus, não tenho missão, e quando cumpro a lei sinto-me quase sempre contraria­do.

terça-feira, janeiro 30

Jesus está vivo!

Aí duns trinta anos, alto de quase dois metros, rosto e crâneo redondos, provavelmente nativo do Ghana. Parou no passeio oposto com a bicicleta pela mão e, voltado para mim, gritou qualquer coisa que não compreendi.
Pedi-lhe que repetisse. E ele repetiu, mas de novo me escapou. Talvez quisesse perguntar o caminho. Atravessei a rua:
- Diga.
- Jesus está vivo!
- Hmm…
- Você com certeza não crê. Não tem cara de crente.
- Olhe que creio.
- Mas não vai à missa.
- Vou sim.
- Então até domingo.
- Até domingo.
A minha mulher não gostou de me ouvir dizer que era crente e ia à missa. Pareceu-lhe uma pouca-vergonha. Mas que fazer em semelhante caso? Levantar questões teológicas com um desconhe­cido, provavelmente transtorna­do? Acirrar-lhe o fundamen­talismo, ou pior : a loucura? Com uma mentira inócua foi ele em paz, fiquei eu em paz.

segunda-feira, janeiro 29

Coincidências, recordações, lugares

Quatro pessoas. Três histórias.

Ele diz: - A minha vida decidiu-se numa tarde, em Janeiro de 91, em Zurique, no bar do hotel Bauer au Lac. Durante uma conversa entre dois amigos, a que assisti pelo simples acaso de lá ter entrado nesse momento, e a qual, inicialmente, nada tinha a ver comigo. Estranho, não é?

- Vai fazer quase dez anos - conta ela. - No Hotel Tivoli, em Lisboa. Ia deitar-me quando dei conta de que tinha esquecido um recado a um colega que também lá estava hospedado. Ainda me lembro do número do quarto, o 703. Liguei umas quantas vezes, mas como o telefone continuava ocupado, resolvi bater-lhe à porta. Ele veio abrir e, ainda a falar com o aparelho na mão, acenou-me para que entrasse. Se nesse instante me tivessem dito que, passado coisa de uma hora, o meu destino estava marcado, eu acharia uma tolice.

O casal sorri, hesita. A mulher acena-lhe. Finalmente é ele quem fala:
- Deve ter sido predesti­nação. Nós mal nos conhecíamos e da primeira vez fomos castos, trocámos um beijo. Na tarde seguinte en­contrámo-nos no que então se chamava uma maison de rendez-vous. Suponho que a expressão e o fenómeno se acham ultrapassados, mas também é facto que isto aconteceu há séculos. Aí, nessa tarde, as nossas vidas levaram uma reviravolta definitiva. Lembro-me da rua e do número: Heren­gracht 341, em Amster­dam. Anos depois a casa tinha sido transformada em hotel. O quarto é fácil de reconhe­cer: fica no primeiro andar, é o único com varanda para o canal.