segunda-feira, janeiro 31

Estatísticas

Entre os habitantes de Amsterdam (eram 821.752 no recenseamento de 2015) contam-se actualmente 22.000 milionários que o Fisco conhece. Há quem sugira que são mais do que esses os que o Fisco gostaria de conhecer.

A realidade

 A maioria dos eleitores apoia a política do Partido Socialista. É um bom e fiel retrato de Portugal.

A "Cavalinha"

Acerca da minha família e do largo do Monte (dos) Judeus em Vila Nova de Gaia, lugar do meu nascimento, já escrevi com detalhe em Ernestina (Quetzal Editores – 2009), baste referir aqui que não era exemplar das condições sociais da época, as décadas de 30 e 40 do século passado, pois em escassas centenas de metros quadrados encerrava um microcosmos que ia da miséria mais abjecta ao luxo dos muito ricos ingleses do Vinho do Porto.

Num extremo estava a Cavalinha, mulher de que nunca soube o nome, só a alcunha, megera de físico masculino e cabeleira loira, provavelmente nascida do cruzamento com algum embarcadiço nórdico, o que poderia também explicar a sua capacidade de beber e a imprevisível mudança de humor, pois sem razão que se adivinhasse, passava do riso para as lágrimas ou vice-versa.

Os três filhos, mais ou menos da minha idade, todos de pai incógnito, meus companheiros na escola e nas brincadeiras, nunca sabiam se o berro era anúncio de carinho ou promessa de bofetada, e por isso, como os cachorros de mau dono, acudiam sem pressa ao chamamento, prontos a esquivar-se à porrada e quase sempre certos que, com razão ou sem ela, era o que os esperava.

Comiam todos na soleira da porta, os pratos nos joelhos, a Cavalinha alerta quando um deles olhava de lado, a querer surripiar-lhe um naco, mandando pronta um tabefe à maneira de prevenção.

Passava-se aquilo na viela das traseiras, eu pendurado na janela, observando sem noção de valores ou diferenças, apenas curiosidade, e o vago sentimento de que, porque não comia com as mãos nem na soleira, mas à mesa, com garfo, faca, e guardanapo, a minha vida de filho único de gente remediada, talvez fosse melhor, mas era sem liberdade e sem aventura.

Que sejam muitas as recordações que guardo da Cavalinha, não é de estranhar, pois à sua maneira era personagem de excepção, do tipo quem não deve não teme, e de uma valentia libertária, indiferente às barreiras sociais ou às ameaças da autoridade.

Às suas horas era peixeira, indo à Afurada as vezes precisas para encher a canastra de sardinha ou carapau, que peixe fino raro se vendia por ali, mas com o mesmo entusiasmo fazia carretos, partia lenha, lavava roupa, ia buscar encomendas à estação ou, garrafa em punho, embebedava-se sentada nos degraus do largo, alternando os goles com risadas histéricas e descargas de manguitos, espectáculo que de tão frequente entrara no folclore e a ninguém incomodava.

No muito que dela ainda lembro, destaca-se o que equivaleu a uma verdadeira e importante lição de anatomia. De cada vez que com uma ou outra vizinha se metia ao barulho, eram socos, bofetadas, arranhões, até que a bufar do esforço entravam no corpo-a-corpo e a arrancar-se mãos-cheias de cabelos. Finalmente chegava o momento em que alguém as apartava, mas então a Cavalinha, que só perdia quando a bebedeira lhe diminuía a força, não imitava o pugilista que ergue o punho vitorioso, mas punha-se de costas para a derrotada e, curvando-se, arrepanhava as saias, pondo à mostra um colossal traseiro.

Embora repetido, aquilo exercia sobre mim um estranho fascínio, não só pela revelação das partes femininas e a estranheza que me causavam, mas ainda pelo simbolismo, já que nesse particular, julgando-se ofendida ou com a razão do seu lado, a Cavalinha não respeitava nem temia guarda, capataz, senhorio ou madama, e ora pela frente, ora pela traseira,  conforme a veneta e o grau do insulto, lá vinha ela com a exibição.

Faziam-no também outras, mas sem o mesmo aplomb, que parecia vir-lhe, tanto da força física, como de um inato espírito de revolta, contra o destino que a tinha feito nascer no mais baixo da escala social e sem esperança de salvação.

Do resto da gente que enchia a viela ainda lembro alguns rostos, alguns episódios, um ou outra figura, o pitoresco das bebedeiras e das zaragatas – mais barulho do que pancadaria - mas sobretudo da iniciação ao vernáculo, para mim sobremodo atraente pela força de expressão, e o mistério da sua clandestinidade, pois por muito que procurasse nunca o lia nos livros ou no jornal, nem o encontrava no dicionário.

 

domingo, janeiro 30

Quando a memória falha

 

Estão ambos a chegar ao que se chamava a idade madura, mas com o correr do tempo tudo muda, diremos então que alcançaram a segunda juventude, o que sob certo aspecto corresponde à verdade, pois gozam ambos de boa saúde, têm uma vida fácil, confortável, problemas quase nenhuns.

Evidentemente, à maneira dos mais acontecem-lhes discórdias e pequenos arrufos, também criam daquelas situações que põem a descoberto que o carinho, o cuidado, as gentilezas, nem sempre são os alicerces que parecem, antes se assemelham ao verniz que um nada arranha.

Nados na burguesia citadina, são exemplares nos valores que a essa classe se atribuem, idem nos pecados, pecadilhos e o que lhes cabe de vícios, secretos ou não.

No Verãol andou ela dias e dias à procura de um colar, aborrecendo-o com a insistência de repetir que não sabia se o tinha perdido, lho tinham roubado ou a memória lhe estava a falhar.

Curiosamente disparou isso nele a recordação do conto de um homem que, para se livrar da esposa e herdar-lhe a fortuna a fizera enlouquecer, o que tinha conseguido à força de, tanto de dia como de noite, e isso durante meses seguidos, constantemente mudar de sítio ou esconder objectos que a mulher procurava, ou ele jurava que ela tinha andado a procurar, “encontrando-lhos” ele depois, provando assim à infeliz que já não sabia o que fazia, estava fora de si, sem dúvida perdera o entendimento.

Tinha sorrido de que aquilo lhe ocorresse, e sem maldade, pura brincadeira, começou por esconder objectos que sabia que a mulher iria procurar, ou mudando de sítio um ou outro que ela momentos antes tivera na mão

Ingénuo, deixando-se levar pelo sentimento que fazia aquilo sem mau propósito, e só até que ela o apanhasse com a boca na botija, sentiu-se duplamente traído pelo pedido de divórcio e ainda  mais pela acusação de crueldade mental.

 

sábado, janeiro 29

Mudanças e melhorias

Anos atrás, num programa da televisão holandesa, Maurice de Hond, especialista das previsões eleitorais, anunciava a sua intenção de se abster de votar, e a necessidade que há de, para manifestarem a sua vontade, os cidadãos venham a possuir instrumentos mais eficientes do que o voto.

Emocionado, argumentava a impotência e a irritação que sente ao votar num partido da sua escolha, e dar-se conta que, chegado ao poder, esse partido alegremente esquece as solenes promessas do programa eleitoral, tomando por vezes decisões bem diferentes ou mesmo opostas. É, afirmava ele, uma forma de trafulhice a que se deve por cobro, talvez por intermédio de referendos, avaliando a prazos regulares em que medida um governo eleito cumpre o prometido.

Nos países onde é elevada a consciência política, a sociedade não descarta a priori as possibilidades de mudança e mostra-se geralmente favorável à análise do que possa conduzir a melhorias.

Mas melhorias e mudanças não estão no programa dos malfadados países onde as leis são para violar, as dívidas para esquecer, o bolo é duns quantos, o resto vive de mão estendida, temendo o amanhã.

 

 

 

 

 

Quando a Terra treme

 Hoje no Observador:

"Junto à marginal e na praia vários locais aproveitam para passear "

O vazadouro

Acontece a todos, o revelarmos de vez em quando o que, por facilidade, chamamos um segredo. Em geral não é segredo, apenas um modo trivial de reforçar uma simpatia ou intimidade.

O caso é que, tal como o dinheiro, também o significado das palavras está sujeito à inflacção. Hoje em dia, nem aquilo que com reverência se denominava segredo de Estado, é levado a sério. Anuncia-se um segredo político, logo uma fonte confidencial com pérfidas intenções o espalha aos quatro ventos.

Não quer isso dizer que não haja segredos genuínos e bem guardados. Ao ler isto talvez você recorde os que tem, da mesma maneira que hoje rebusquei na caixa-forte onde aferrolho os meus. E o motivo deste arrazoado é um que lá encontrei e do qual me desejaria libertar, mas não sei como fazê-lo.

Alguns acharão que basta contá-lo, outros recomendarão o confessionário ou o psicanalista. Contudo, por razões várias, nenhuma dessas soluções me parece viável, de modo que o deixo onde está, até que um dia destes me atreva a revelá-lo sob o disfarce da ficção. Que é esse o vazadouro onde o escritor seguramente despeja aquilo que o aflige.