terça-feira, fevereiro 12

Um louvor ao cozido


Um louvor ao cozido

Grandes ou pequenas, numa família há sempre desavenças, e ainda hoje guardo  a recordação traumática de dois irmãos nossos vizinhos que se mataram por terem ideais políticos opostos. Felizmente raro se chega a esse excesso, se bem que mesmo pequenas irritações bastem para azedar uma conversa ou que uma simpatia diminua.
Todos nos damos conta de que, talvez por desinteresse de ideais elevados, na nossa sociedade presta-se demasiada atenção ao clima, à energia limpa, à qualidade do ar, ao exercício físico, às dietas, sabe Deus que mais. Serei eu o último a querer entrar em discussões, certo de que o meu ponto de vista desagradaria à maioria, mas não procedo assim por cobardia, só para manter a paz que tanto prezo. Contudo, se essa é a minha atitude para com os de fora, no seio da família são muitas as ocasiões em que basta um pequeno nada para que os problemas do clima, a defesa do planeta, a qualidade do ar, a ginástica e as dietas, resultem no chamado pomo de discórdia.
Somos onze, unidos como uma boa equipa de futebol, queremo-nos bem, não há memória de jamais termos desatado aos gritos ou aos murros, mas sentados à mesa para almoço de festa ou jantar de aniversário, infalivelmente chega o momento em que alguém faz um reparo irónico sobre a manteiga no molho, o perigo da carne, o malefício que o arroz causa. Batatas? Ainda por cima fritas? Nem falar!
A partir desse instante fatal não há volta a dar-lhe, pois mesmo que o culpado se contenha, eu me cale, e outros peçam calma, o tom irá azedando.
Convidar amigos para almoçarmos num restaurante também já não é o que era.
Há sempre um que começará por nos pôr ao corrente do bom resultado da dieta que agora segue, dos quilos que perdeu em tempo recorde, às vezes levantando-se para mostrar no cinto os poucos furos que agora aperta. Um outro fará má cara à costeleta no prato do vizinho, apontando o potencial assassino que a gordura é. Para não falarmos do que só bebe vinho biológico e que, examinando a salada, registará com agrado que tem jacatupé mexicano, brócolo chinês kai-lan, o tempero exacto de sal do Himalaia e de kampot, a pimenta do Camboja, que nos dirá ser a melhor do mundo.

Dias atrás a minha mulher e eu regressámos a Trás-os-Montes. Mantendo um ritual de anos, a nossa melhor amiga recebeu-nos com um cozido à portuguesa, confecionado segundo as regras: chouriça, presunto, orelha, toucinho, morcela, costela, chispe, salpicão. Comemo-lo em paz e silêncio, e que bem que nos soube o pecado.