Um louvor ao cozido
Grandes ou pequenas, numa
família há sempre desavenças, e ainda hoje guardo a recordação traumática de dois irmãos nossos
vizinhos que se mataram por terem ideais políticos opostos. Felizmente raro se
chega a esse excesso, se bem que mesmo pequenas irritações bastem para azedar
uma conversa ou que uma simpatia diminua.
Todos nos damos conta de que,
talvez por desinteresse de ideais elevados, na nossa sociedade presta-se demasiada
atenção ao clima, à energia limpa, à qualidade do ar, ao exercício físico, às
dietas, sabe Deus que mais. Serei eu o último a querer entrar em discussões, certo
de que o meu ponto de vista desagradaria à maioria, mas não procedo assim por
cobardia, só para manter a paz que tanto prezo. Contudo, se essa é a minha atitude
para com os de fora, no seio da família são muitas as ocasiões em que basta um
pequeno nada para que os problemas do clima, a defesa do planeta, a qualidade
do ar, a ginástica e as dietas, resultem no chamado pomo de discórdia.
Somos onze, unidos como uma boa equipa
de futebol, queremo-nos bem, não há memória de jamais termos desatado aos
gritos ou aos murros, mas sentados à mesa para almoço de festa ou jantar de
aniversário, infalivelmente chega o momento em que alguém faz um reparo irónico
sobre a manteiga no molho, o perigo da carne, o malefício que o arroz causa.
Batatas? Ainda por cima fritas? Nem falar!
A partir desse instante fatal
não há volta a dar-lhe, pois mesmo que o culpado se contenha, eu me cale, e
outros peçam calma, o tom irá azedando.
Convidar amigos para almoçarmos
num restaurante também já não é o que era.
Há sempre um que começará por
nos pôr ao corrente do bom resultado da dieta que agora segue, dos quilos que
perdeu em tempo recorde, às vezes levantando-se para mostrar no cinto os poucos
furos que agora aperta. Um outro fará má cara à costeleta no prato do vizinho,
apontando o potencial assassino que a gordura é. Para não falarmos do que só
bebe vinho biológico e que, examinando a salada, registará com agrado que tem
jacatupé mexicano, brócolo chinês kai-lan, o tempero exacto de sal do Himalaia
e de kampot, a pimenta do Camboja, que nos dirá ser a melhor do mundo.
Dias atrás a minha mulher e eu
regressámos a Trás-os-Montes. Mantendo um ritual de anos, a nossa melhor amiga recebeu-nos
com um cozido à portuguesa, confecionado segundo as regras: chouriça, presunto,
orelha, toucinho, morcela, costela, chispe, salpicão. Comemo-lo em paz e silêncio,
e que bem que nos soube o pecado.