Os cordelinhos do Demo
Há alturas em que
involuntariamente nos perguntamos se fazemos aquilo em plena consciência, ou se
não será o Diabo que puxa os cordelinhos e nos empurra. Principalmente no caso
de tentações, o ramo em que desde o princípio do mundo ele se torna cada vez
melhor especialista.
Todavia há quem não lhe fique
atrás. A Leonor, trinta e um anos, morena de espectacular presença, engenheira na “Vias e Arruamentos”, em casos
de tentação há muito deu prova de que pode pedir meças a Belzebu, e de facto,
ao contar o caso o seu lindo sorriso aproxima-se do diabólico.
O “Passa-Culpas”, alcunha que tem na Câmara, havia
semanas que andava a planear, que iria ser desta maneira, daquela, pondo as
flores, tirando as flores, dando um jeito para que a fotografia do casamento
não ficasse de frente, até ter a certeza de que de que estava tudo preparado de
maneira a que a coisa corresse a preceito. Impaciente, receoso que faltasse,
tinha-lhe telefonado umas quantas vezes a confirmar, e agora estava combinado:
seria sexta à noite, quando a Margarida tinha formação e o pequenito ficava com
a avó.
Ao mesmo tempo que lhe beijava a face, Leonor não pôde
deixar de sorrir com a transparência da estratégia. Diminuíra as luzes, sobre a
mesa arranjara os pratinhos de amêndoas, a garrafa de “Cutty Sark”, copos de
cristal, os sofás frente a frente.
Sorriu também de vê-lo de calções, t-shirt, nos pés
umas sapatilhas amarelas, curioso traje para um D. Juan. Ele cumprimentou-a
pela elegância e, brincalhão, arregalou os olhos para o decote, seguiu a tira
de ventre nu, parou-os na minissaia, disse que achava os brincos muito bonitos,
e o colar também, bonito mesmo.
Beberam. Falaram dos colegas, da estrada nova, das
dificuldades com o presidente, das obras do saneamento. Falaram de música.
Falaram de cinema. Entusiasmou-se ele, jurando que cineasta nenhum igualava
Woody Allen. Se bem que Paul Verhoeven… A Leonor de certeza tinha visto ”Instinto
Selvagem”. Espantoso. Certos filmes eram impressionantes, mas no “Instinto
Selvagem” havia cenas em que uma pessoa se dava conta…
Jura ela que foi sem maldade, ao cruzar as pernas
demorou talvez dois segundos em vez de um, e viu então o “Passa-Culpas” agarrar
a “ferramenta”, o queixo a tremer, bebendo de um trago o resto do uísque.
Pôs-se em pé, afogueado, estacou ao ver a porta
abrir-se e Margarida toda sorrisos, a explicar que a formação acabara cedo por
causa do calor, mas nem teria ido se soubesse que a senhora engenheira os vinha
visitar.