domingo, maio 28

Ainda na mesma, senhor Eça

 

Eles, e agora também elas – teremos de arranjar pronome pessoal para o conjunto, que o eles é machista – discutem, criticam, propõem. São uns a favor, outros contra, mas todos mudam, reviram, juntam-se, desunem-se, instáveis e irregulares como as ondas do oceano.

Sabem de política e futebol. Argumentam exaustivamente, sobre política e futebol. Ignorando que a política é para poucos, e o futebol reserva particular dos engravatados da FIFA, que com a franqueza bruta da economia de mercado, mostram que mandam nos governos, não se lhes dando que cor têm.

Sabem de rock e carros topo de gama, cinema, Johnny Depp, Penélope Cruz, e de pesos pesados: Sartre, Saramago, Antunes. Sabem até das razões da Rússia e das desigualdades do Iraque, da Palestina.

Mas é só fachada, medo, cortina de fumo, porque se sabem… Não. Porque todos nós, portugueses, nos sabemos sem rei nem roque, sem Deus e sem futuro, continuamos a ser os Alpedrinhas, “das nossas terras palreiras da vanglória e do vinho.”

“Desventuroso Alpedrinha!  Tu eras o derradeiro Lusíada, da raça dos Albuquerques, dos Castros, dos varões fortes que iam nas armadas à Índia! A mesma sede divina do desconhecido te levara, como eles, para essa terra de Oriente, donde sobem ao céu os astros que espalham a luz e os deuses que ensinam a lei. Somente não tendo já, como os velhos Lusíadas, crenças heróicas concebendo empresas heróicas, tu não vais como eles, com um grande rosário e uma grande espada, impor às gentes estranhas o teu rei e o teu Deus. Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! Nem rei por quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te gastas nas ocupações únicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos Lusíadas – descansar encostado às esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios." 

sábado, maio 27

Desencontros

“Pára um instante, a escutar as vozes em baixo, não distingue se é a televisão ou são eles, e encolhe os ombros, desinteressada, tomara que estivesse na hora de se pôr a andar.
Demorou na banheira, seca-se defronte do espelho, indisposta com o que lhe falta. Nem cremes nem batom, nos boiões nada mais há que rapar, nem adianta ir à procura do que sabe que não tem.
– Foda-se!
Praga avulsa, sem destinatário e de alívio nenhum, apenas ruído. Não lhe apetece o café, menos ainda fazer-lhes companhia, fica por ali, remexendo nisto e naquilo, despendurando um vestido para de novo o repor, que não vale a pena levar, atira a mala para cima da cama e abre-a, volta a fechá-la, olhando como se lhe ignorasse a serventia ou tivesse de fazer cálculos.
Em baixo a televisão rebenta num estrondo de palmas e gargalhadas, tudo treme, ouve passos de corrida, alguém atira com uma porta e desliga.
Deve ter sido o velhote, que é distraído, tem os dedos grossos, engana-se sempre no comando.
Tira mais roupa do guarda-fatos e deita-a à toa, só coisas dela, o gordo vai ficar de beiço caído quando descobrir que já não tem escrava. Cagarolas, aceita, e em vez de ameaçá-la ou de mandar, ser homem, encolhe-se, põe-se às risadinhas de puto no recreio.”

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in O Meças

 

 

quarta-feira, maio 24

Ainda haverá?

 

 

Ainda haverá namoro? O namoro romântico, cheio de tabus, preconceitos, muros, insatisfações e esperanças?

Pergunto isto porque venho de um longínquo antigamente e é apropriado fingir  ignorância acerca das coisas da modernidade, mas claro que sei, já não há namoro. Há relações, arranjos práticos baseados no interesse e na utilidade. Paixão? Loucuras? Arroubos? O que se vive no cinema e na têvê pelos jeitos chega e sobra. Um ou outro tolo ainda mandará flores, uma ou outra ingénua sonhará em fazer ninho, mas o corrente, o que apercebo à minha volta,  é de um friamente calculado pragmatismo.

Virá daí felicidade? Não creio. Uns anos de festa? Por certo. Mas nessa pedreira não se talha a pedra angular da sociedade.

 

domingo, maio 21

A febre da política

 

A Natércia! Casada com o Alfredo Varizo, quinze anos depois viúva do dito, filha do senhor Proença da Cerâmica. Que personagem, a Natércia. A nós, velhos amigos, basta recordá-la para sentirmos os calafrios que a sua presença causava.

Ser tagarela era o menos, sobre isso passava-se a esponja, mas era preciso excepcional resistência para aguentar a catadupa de palavras e o modo como ela as pronunciava, rebolando os erres, pondo os lábios em bico.

Porque era amiga, também essas maneiras de boa vontade se lhe descontavam dos pecados que tinha, não fosse aquela inesperada, e desmedida ambição que um dia a assaltou, à semelhança de um acesso de febre, mas de facto um transtorno da mente.

Professora no secundário, mãe de três filhas, de maneira idêntica à que alguns ouvem vozes misteriosas, ou são visitados pelo Espírito Santo, descobriu-se a Natércia com uma inconcebível, de facto tristemente cómica vocação parlamentar. E embora fosse nula a possibilidade de um dia a vermos deputada, não se calava sobre os projectos de lei que iria apresentar, as comissões a que iria presidir, os debates em que os oponentes, exaustos, cairiam como tordos, fulminados por tão fortes e revolucionários argumentos.
Em certas ocasiões dava ideia de estar já numa tribuna, imitando os gestos de agarrar o microfone, e embora a cena se passasse na sua sala, levantava-se, apoiava as mãos no espaldar da cadeira, erguia a cabeça, cerrava os olhos

Não parava com o espectáculo, e de nós, que ali estávamos de visita, queria ouvir aplauso, lhe déssemos a impressão de que a víamos já a defender a política do seu ministério. Porque essa certeza tinha, e no seu dizer tão segura como dois e dois serem quatro: ainda havíamos de a  ver num posto do governo.
Mas então já há muito o sabíamos: éramos o conforto de uma louca mansa.