Será ela que nos convida?
Talvez nem todos, mas com alguma
certeza pode-se afirmar que muitos de nós já viram a morte diante dos olhos.
Um despiste, um trambolhão escadas
abaixo, ser quase apanhado pelo eléctrico ou o autocarro, a escorregadela numa casca
de banana, o também clássico escapar por
um triz ao tarado que não respeita a passadeira... A vida, sobretudo na cidade, oferece um sem-fim daquelas
possibilidades de desastre em que o susto é acompanhado pelo sentimento de que
um nadinha mais, diferença de um cabelo, um negro de unha, e a última hora
teria soado.
Na aldeia, embora menos frequentes,
também se dão situações em que aquele que nelas participou se maravilha de
estar vivo. O Abílio é desses e não se cansa de contar como na tarde em que
tinha ido à horta regar os feijões acenou ao Jesuíno, que andava mais acima a
lavrar o amendoal que herdara do avô, e de repente o viu despenhar-se pela
encosta com o lagarteiro, e a máquina tantas vezes se embrulhou com ele que os
do INEM diriam que o corpo tinha ficado de um modo que nem parecia de gente.
Interrompe-se então, baixa os
olhos, fica um instante a rezar, persigna-se e jura que a sua sorte foi o
lagarteiro apanhá-lo de raspão, só lhe ter partido uma perna e feito perder os
sentidos. Doutro modo tem a certeza que tão amigos como eram, mais do que
irmãos, se tivesse visto o Jesuíno no estado que diziam, sabe que não aguentava.
A nossa conversa poderia ter ficado
por ali, mas o Albino aguarda de mim uma espécie de reciprocidade, quer saber
se também já alguma vez me vi em perigo e a pensar que me tinha chegado a hora.
Aquela inesperada curiosidade
apanha-me desprevenido, resmungo para me dar tempo de decidir se lhe vou contar
um caso em que realmente me vi em perigo de vida, ou se não será melhor satisfazê-lo
com uma fantasia aceitável. Decido pela verdade e conto-lhe que uma vez, para
festejar o meu aniversário, um piloto amador, que eu não sabia brincalhão, me
convidou para dar uma volta num desses aviõezitos de dois lugares abertos, e que
por gracinha desse amigo da onça me vi no céu de cabeça para baixo, a
perguntar-me se os cintos que pelos ombros me prendiam ao assento iam aguentar
o peso, mais que certo de que de um momento para o outro chegaria o meu fim.
- Mas não lhe aconteceu mal! – sorri
o Aníbal com falsa satisfação e uma ponta de escárnio a sublinhar a descrença.
É facto, dessa escapei, mas continuo
a perguntar-me se às vezes por descuido batemos à porta da Morte, ou se é ela
que nos convida.