A Consoada e o tsunami
Quando estavam a fazer a lista dos convites para a Consoada ainda
se tinham rido de que seriam treze à mesa, de modo que por causa das dúvidas –
com superstições nunca se sabe, é melhor não arriscar – convidaram também o Mendonça, a Géraldine e o filho de ambos, que tinham
perdido de vista, e de quem pouco mais recordavam que no colégio pedia que o
tratassem por Ricardo e não por Feliciano, como o avô paterno e padrinho exigira
que fosse baptizado.
Seriam dezasseis, curiosamente oito homens e oito mulheres, e
mesmo que não fosse senão pelas diferenças de idade, a mistura de jovens, gente
madura e idosos garantia animação.
De facto, se momentos antes de terminarem a sobremesa alguém
tivesse perguntado, a resposta unânime seria que a Ceia tinha sido excelente, estavam
ali na paz e harmonia que se espera da Noite de Natal, a qualidade do bolo-rei
correspondera à expectativa, o Avô Joaquim resumiu o sentimento geral ao dizer
que estava a ‘rebentar’. Uma piscadela de olho da nora levou-o a corrigir,
dizendo hipocritamente que ainda tinha um lugarzinho para saborear a
‘délicieuse bûche de Noël’ que Géraldine trouxera.
Mais tarde não se consegue explicar: cada um vem com o seu
argumento, a sua razão, ou como tinha interpretado, a certeza do que ouviu, e
assim por diante. Terá sido porque alguém reparou que Susana cortava pedacinhos
da ‘bûche’, mas deixava-os no prato? Ou deu nas vistas o modo como o Gonçalo
franziu o nariz ao provar, fingindo que engolia a custo? O caso é que de súbito,
por vias travessas e elogios às rabanadas de antigamente, às filhós, à aletria
e ao arroz doce da avó Amélia – ‘Com muito mais açúcar do que agora!’- se passou da conversa à discussão, de um
assunto a outro e daí às piadas, ao azedume, a ironia escondendo mal o desdém
pelo gosto alheio e as opiniões diferentes. Já iam no aquecimento global, o
desbaste da floresta amazónica, a eleição de Bolsonaro, o Muro de Trump, quando
o Avô Joaquim, temendo que o ambiente descambasse, aproveitou um instante de falsa
acalmia e propôs um brinde.
Foi um burburinho. Ia-se brindar a quê? A quem? Às
trafulhices do governo? Às greves? Ao ilusionista Centeno?
Como por timidez ou maneira sua pouco tinha dito,
surpreendeu-os ver que Ricardo levantava o dedo ao jeito de quem pede a palavra.
- Diz lá, meu rapaz, a que vai ser? – animou o Avô.
- Eu acho que se devia brindar… - a mãe ainda lhe fez sinal,
mas não adiantou – a que venha por aí um tsunami e limpe esta mer… esta
marmelada toda.