terça-feira, fevereiro 12

A Consoada e o tsunami


A Consoada e o tsunami
Quando estavam a fazer a lista dos convites para a Consoada ainda se tinham rido de que seriam treze à mesa, de modo que por causa das dúvidas – com superstições nunca se sabe, é melhor não arriscar – convidaram também o  Mendonça, a Géraldine e o filho de ambos, que tinham perdido de vista, e de quem pouco mais recordavam que no colégio pedia que o tratassem por Ricardo e não por Feliciano, como o avô paterno e padrinho exigira que fosse baptizado.
Seriam dezasseis, curiosamente oito homens e oito mulheres, e mesmo que não fosse senão pelas diferenças de idade, a mistura de jovens, gente madura e idosos garantia animação.
De facto, se momentos antes de terminarem a sobremesa alguém tivesse perguntado, a resposta unânime seria que a Ceia tinha sido excelente, estavam ali na paz e harmonia que se espera da Noite de Natal, a qualidade do bolo-rei correspondera à expectativa, o Avô Joaquim resumiu o sentimento geral ao dizer que estava a ‘rebentar’. Uma piscadela de olho da nora levou-o a corrigir, dizendo hipocritamente que ainda tinha um lugarzinho para saborear a ‘délicieuse bûche de Noël’ que Géraldine trouxera.
Mais tarde não se consegue explicar: cada um vem com o seu argumento, a sua razão, ou como tinha interpretado, a certeza do que ouviu, e assim por diante. Terá sido porque alguém reparou que Susana cortava pedacinhos da ‘bûche’, mas deixava-os no prato? Ou deu nas vistas o modo como o Gonçalo franziu o nariz ao provar, fingindo que engolia a custo? O caso é que de súbito, por vias travessas e elogios às rabanadas de antigamente, às filhós, à aletria e ao arroz doce da avó Amélia – ‘Com muito mais açúcar do que agora!’-  se passou da conversa à discussão, de um assunto a outro e daí às piadas, ao azedume, a ironia escondendo mal o desdém pelo gosto alheio e as opiniões diferentes. Já iam no aquecimento global, o desbaste da floresta amazónica, a eleição de Bolsonaro, o Muro de Trump, quando o Avô Joaquim, temendo que o ambiente  descambasse, aproveitou um instante de falsa acalmia e propôs um brinde.
Foi um burburinho. Ia-se brindar a quê? A quem? Às trafulhices do governo? Às greves? Ao ilusionista Centeno?
Como por timidez ou maneira sua pouco tinha dito, surpreendeu-os ver que Ricardo levantava o dedo ao jeito de quem pede a palavra.
- Diz lá, meu rapaz, a que vai ser? – animou o Avô.
- Eu acho que se devia brindar… - a mãe ainda lhe fez sinal, mas não adiantou – a que venha por aí um tsunami e limpe esta mer… esta marmelada toda.