domingo, julho 31

Tudo são passeios

 

Para quem o recheio da carteira não é problema, são sem conta as formas de passar o tempo e uma só a dificuldade: a da escolha. Que essa tem o que se lhe diga, não é qualquer um que do pé para a mão decide se vai de férias ao Algarve,  finalmente realiza a visita aos Açores, escolhe Nova Iorque, as  Antilhas ou, já cansado da própria indecisão, descobre-se  em meados de Junho num hotel da Corunha, a gozar sete dias de frio, chuva e nevoeiro.

Vai quase em dois anos que num almoço de amigos se começou a falar de férias, e o Quim Tavares os tinha feito rir com a sua “desgraça” na Galiza, o frio, a chuva e o nevoeiro, felizmente compensados pela qualidade das ostras e dos mexilhões.

Como para fazer contrapeso ao relato do Tavares, mas também por ser esse o seu feitio de indestrutível optimista, começou o Pontes com a ladainha do clima de Bali e aquelas raparigas...

O Faria interrompeu-o, era enfadonho anos a fio a aturá-lo com Bali e as gajas de tanga, só mesmo um maduro como ele não se dava conta. Já agora, para variar, ouvissem o que lhe contara o Mascarenhas, que não tinham voltado a ver desde que estava de casa e pucarinho com a viúva do Frazão.

Por influência da dita senhora, talvez também porque os dois enfartes, além do susto o teriam levado a reconsiderar a possibilidade de que haja Céu, Purgatório e Inferno, o Mascarenhas regressara ao seio da Santa Madre Igreja e assistia à missa, mas deixara ainda que a companheira o convencesse a entrar num grupo, que todos os quinze dias organizava excursões a cemitérios, menos por motivos de devoção ou piedade, do que apreço pela arquietctura dos túmulos, e a extraordinária variedade das expressões a testemunhar a perda, dor e saudade causada pelos defuntos.

Indecisos se deveriam rir ou lamentar o amigo,  escolheram a solução clássica: onde vamos jantar?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, julho 30

Homicídios

 

Desatinado se pode chamar o que mata com veneno, armas brancas, a tiro ou usando o garrote. Quem tem algum senso comete o assassinato perfeito, aquele que não dá cadeia nem  deixa rasto de sangue, e dispensa álibis.

Uma noite, por volta dos quinze anos, matei o meu pai. Não me surpreendeu vê-lo de manhã ao pequeno-almoço a fumar e a ler o jornal enquanto bebia o café. Para mim estava morto, o resto eram aparências.

Por esse tempo matei também a professora de Latim, uma avantesma que, de casaco comprido, tacões rasos, cachecol e chapéu com peninha, recitava frases dos Commentarii De Bello Gallico batendo com o ponteiro no soalho. Foi dum só golpe.

Matei a Emília por crime de lesa-majestade, ao descobrir que tinha trocado a paixão dos meus dezoito anos por um tenente de Cavalaria 7.

O sargento que no Outono de 1949 iria matar no Quartel da Graça, em Lisboa, caiu  instantâneo, nem tempo teve de dar conta da chama assassina do meu olhar.

Depois desse perdi a conta, e se recordo um ou outro, é mais uma questão de pitoresco: a forma como este levantou os braços dizendo-se inocente, a bajulice dum outro caído de joelhos, as lágrimas de crocodilo daquela que me enganou e, ao ver-se descoberta, morte nos olhos, pediu perdão, jurando arrependimento.

A idade acalmou a minha sede de sangue, e o último que matei já lá vão bons anos. Era um merdeiro, humilde de nascença, mas tão convicto da fineza aristocrática do seu espírito que  julgava poder permitir-se extremos de pulhice. Com esse usei o desdém numa única dose.

Fatal como cianeto.

De volta

A história do regresso fica para outra altura, mas foi sem novidade nem perigo, o caso é ter sido a última das realizadas desde Março de 1964 até agora, quilómetros bastantes para usmas voltas à Terra.

Grato aos que aqui vêm, pois me dão oportunidade para não preguiçar ou desistir, porque isto de viver e funcionar no mundo de hoje tem mais de espinhos do que de rosas