quinta-feira, dezembro 31

Tempo de sombras

Num tempo como este, de estranhas sombras e ameaças, de perigos que têm menos a ver com epidemias do que com um futuro de totalitarismo e desespero, bem posso querer escrever palavras de optimismo, mas a tristeza, a decepção e o medo – sim, o medo – levam a melhor, são quem agora ordena.

Infelizmente não é o medo das epidemias, que sempre as houve, continuará a haver, e atrás delas vêm as vacinas e os remédios, mas o medo que me causa o semelhante, tão estranhamente agachado e submisso, medroso, que não vê no outro um irmão mas um perigo, um malfeitor desobediente, um assassino potencial.

Desse modo não serei eu a fazer votos de que com a mudança do calendário terminem as sombras, as ameaças, porque o sentimento me diz que elas vieram para ficar, e na vida terrena não há milagres.

quarta-feira, dezembro 30

Fosse eu a mandar

 
Fosse eu a mandar, este livro seria de leitura obrigatória.

terça-feira, dezembro 29

Os mete-mêdo


 O jornal de Volkskrant publica hoje a fotografia de um funeral destes tristes tempos e informa que desde 1945 nunca morreram tantos holandeses num ano. E sim, mesmo dando desconto ao total de habitantes.

segunda-feira, dezembro 28

27 e 28/12/1994

"Terça-feira, 27 de Dezembro - Têm de ser preenchidos os impressos da reforma e os da pensão da velhice. Só de ler as perguntas já se me desanda a cabeça e dalgumas palavras não faço ideia que significado possam ter. O que serão, por exemplo, 'as bases de contribuição da indemnização de disponibilidade'? Como saber se  'É ou foi transferida a sua importância livre de impostos? Ver pág. 5, número 10.' Transferida? Como? Porquê? Para quem? Com que consequências? Deus me valha!

Não fosse a minha mulher tomar a si o encargo, creio que dava em maluco. Ou, com piores consequências, faria como fiz com as declarações dos impostos nos primeiros anos em que aqui vivi: como as não compreendia, atirava-as simplesmente para o cesto dos papéis. Que me lembre, nesse tempo paguei de multas o equivalente a um rendimento.

Depois do medo de ontem, eu nos próximos tempos dispensaria as más notícias, mas o postal que ele me manda com as boas-festas começa com uma linha de mau agouro: 'Dentro em breve vão ter de me meter a faca'. Telefono preocupado. São dois tumores, um na próstata, outro nos intestinos, e ele ainda não sabe se benignos ou malignos. A mulher foi buscar o resultado das análises e não deve tardar.

Prometo telefonar mais tarde e entretanto dançam-me na cabeça os maus cenários a que estamos sujeitos na nossa idade. Uma hora depois, alívio. Os tumores são benignos. A operação ficará para o princípio do ano.

- Mas é só o adiamento da pena capital, não é? - comenta ele com um riso ácido.

Em Lisboa o prémio Fernando Pessoa no valor de sete mil contos foi atribuído ao poeta Herberto Hélder que, embora pobre, 'para não perder a sua independência' se negou a recebê-lo. Li, pensei no caso, e não chego a conclusão que me satisfaça, pois curiosa noção será preciso ter da fragilidade da própria independência, para acreditar que um prémio literário público a possa pôr em perigo.

Quarta-feira, 28 de Dezembro - Por vezes julgo-me imune, mas é a memória a passar-me rasteiras, porque na verdade a depressão está sempre à espreita. Basta um pensamento, uma palavra, uma olhadela quando, como hoje, mesmo ao meio-dia tudo é cinzento escuro e a chuva se eterniza. Então não há remédio nem ajuda que tire da alma as trevas em que ela se embrulha."

.......

In Tempo Contado, Quetzal, 2010.

 

domingo, dezembro 27

A máscara do morto-vivo

Cada um é como o Senhor o criou, razão bastante para aceitar certos modos e comportamentos de pessoas que nos merecem amizade. Ao Manuel Sant'Anna perdoávamos as peneiras de grafar o seu nome com apóstrofo e dois enes, fingíamos de surdos ao gosto que tinha de usar um vocabulário empolado, pelo que nunca o ouviriam falar das manias mas das idiossincrasias de alguém, referir-lhe o semblante em vez do aspecto, e assim por diante.

É pena que tenha tão estranhamente falecido e recordo-o com saudade, pois foi amigo sincero, daqueles que sentem como suas as nossas alegrias e sempre prontos a ajudar nas horas de tormenta.

Dou-me por vezes a imaginar que a nossa estadia no planeta é um apeadeiro entre duas estações importantes, o nascimento e a morte, e que esta talvez não seja um término mas ponto de passagem para regiões superiores. Se porventura assim for, aqueles com quem privámos na Terra seguem algures uma nova e mais complexa existência, pelo que em certas ocasiões me sinto tentado a deixar mensagens para o Sant'Anna no Facebook, na esperança de que as receba onde agora se encontra, e me perdoe o riso escarninho com que num jantar de Consoada o ouvi falar da bruxaria da máscara mexicana que tinha comprado em Acapulco.

A primeira vez que dera com ela fora do lugar do costume pensou que fosse coisa da Idalina, a cabo-verdiana que arrumava a casa e lhe tinha dito que semelhante carantonha metia medo, dava a impressão de até ser capaz de falar. Quando uns dias depois a descobriu na cómoda não fez reparo nem incomodou a rapariga, encolheu os ombros e voltou a pô-la onde pertencia. Durante um tempo talvez não tenha mudado ou ele não deu conta, susto grande apanhou uma madrugada ao descobri-la encostada à mesinha de cabeceira, as órbitas vazias dando a impressão de o encarar com ameaça.

Com um pontapé atirou-a para o corredor e à tarde telefonou à Idalina para que a deitasse no lixo, descrente que ela respondesse que não lhe  tocava, era coisa ruim, se o senhor a quisesse obrigar então teriam de fazer as contas porque se despedia.

Acalmou a rapariga, não precisava de lhe mexer, deixasse-a ficar que ele a levaria para o contentor. Foi o que fez mal chegou a casa, e incapaz de lhe tocar empurrou-a com a vassoura, evitando aquelas órbitas de malefício que pareciam forçá-lo a que as olhasse.

O médico, que o sabia são como um pêro, estranhou  que tivesse caído fulminado. A Idalina é que não tem dúvidas, mas diz que sobre certas coisas o melhor é calar.

sábado, dezembro 26

"Negacionismo"

"A propósito, somos diariamente informados de quantos morrem “com” e talvez “por” Covid. Quantos se salvam da Covid graças à “estratégia”? O povo, maioritariamente favorável à “estratégia”, não faz essa pergunta. O povo, instigado por políticos inqualificáveis e “media” submissos, receia o que o mandam recear e não faz perguntas. Aos poucos que as fazem, a ortodoxia chama “negacionistas”, erguendo de súbito a Covid ao estatuto do Holocausto.

Convém notar que “negacionismo”, na acepção de negar a realidade, é aceitar as “medidas”, as restrições, as humilhações, as falências, as doenças e as mortes, milhares de mortes, a pretexto da Covid. “Negacionismo” é resumir o mundo à Covid em prejuízo do que sobra. “Negacionismo” é acreditar que “lá fora” é igual, e que todos os países têm o excesso de mortalidade “não-Covid” que Portugal tem, e que todos os países impõem as regras grotescas que Portugal impõe, e que todos os países são susceptíveis à prepotência e à miséria como Portugal é. “Negacionismo” é, perante um cenário de cadáveres e ruínas, elogiar as “autoridades” responsáveis pelos cadáveres e pelas ruínas. “Negacionismo” é o brutal desprezo pelos danos infligidos nos que nos rodeiam, na solitária condição de que nós não apanhemos o bicho. “Negacionismo” é este egoísmo terminal e esta cegueira. A Covid trouxe ao de cima o pior dos portugueses."

Alberto Gonçalves / O Observador