terça-feira, fevereiro 12

No meu tempo



No meu tempo

Mesmo mal entrados nos cinquenta são muitos os que não resistem a garantir terem vivido num tempo em que quase tudo era melhor ou mais em conta, mais agradável, seguro e eficiente. Desde a certeza das amizades ao preço da cerveja, das estadias no Algarve ao sabor dos rojões do Minho e à qualidade do areal na praia de Moledo, para eles a actualidade não sofre comparação com o mítico antigamente, ao qual se referem com os trejeitos e o modo desolado que usa quem recorda a morte de um parente querido.
Chegados aos sessenta ou setenta o seu comportamento mostra uma subtil mudança, pois embora continuem a exagerar as virtudes e qualidades do passado, adoptam o que lhes parece ser a atitude de sabedoria que supostamente aumenta com os anos: encolhem os ombros, como se o interlocutor não possa ter experiência suficiente ou conhecimento bastante para compreender o passado.
É esse o caso do Zé Oliveira, meu camarada há uma vida e bom exemplar do comportamento saudosista. No seu parecer não há volta a dar-lhe: com os mais novos não adianta discutir nem explicar, porque nem eles entendem nem passaram pelo mesmo, mas eu terei de lhe dar razão. É ou não é verdade que no nosso tempo, quando não se usavam tantos químicos, a comida tinha outro  sabor? É ou não é verdade que no nosso tempo havia mais educação e mais respeito? É ou não é verdade … À medida que vai desfiando exemplos conta pelos dedos, e finalmente, porque não lhe sobram dedos para a contagem, levanta os braços ao céu a sublinhar o seu desalento.
Numa ou noutra ocasião faço coro e aceno que sim com a cabeça, pelo menos o bastante para que ele ganhe a certeza de que concordo e estou do seu lado. Mas na verdade entra aí alguma hipocrisia, pois a minha solidariedade é fingida, só por camaradagem alinho com os seus louvores ao passado.
Não procedo assim por vontade de remar contra a maré, por teimosia em negar a evidência das coisas boas que desapareceram ou não lamente o valor das virtudes antigas, mas por uma razão bem mais prosaica: o receio de que, mantendo-me em demasia agarrado ao antigamente, me torne cego para os benefícios do presente ou pior ainda, que o presente me assuste.
Esse medo não se deseja a ninguém, pois não somente envenena o dia-a-dia e retira a alegria de viver, mas assemelha-se muito a uma forma de despedida ou a um suicídio que se vai adiando.
O existir não pede apenas coragem e equilíbrio, mas também algum desapego, porque a nenhum de nós cabe melhorar o mundo ou parar o tempo.