terça-feira, novembro 30

Moura na costa

 

A probabilidade de que ela venha a saber deste texto parece-me nula, por isso me atrevo a desafiar o Destino. Se tivesse dúvidas francamente não o arriscaria.

Nem bonita nem feia, deve andar a meio dos quarenta. Nascida em Zagreb, filha de mãe sérvia e pai croata, tamanhinha, islamita, despachada no modo, casada, mesmo quando sorri tem aquele ar de que antigamente se dizia de pêlo na venta.

Bom-dia, boa-tarde, as banalidades sobre o tempo, o sol, a falta dele, a gentileza de segurar uma porta...Somos vizinhos irá para vinte anos e fora o que está acima nada mais sei dela.

Na semana passada, a coincidência de ao mesmo tempo estacionarmos lado a lado na garagem do prédio – há coincidências que se provocam – gerou um princípio de conversa.

Ela a perguntar se estava demasiado perto, eu a ver se havia espaço para abrir a porta. A caminho da escada, em vez das banalidades sobre o tempo, desata inesperadamente a contar do apartamento que tem no Montenegro e dos terrenos que comprou na Eslovénia, e do advogado sérvio seu procurador, e das praias, e dos vinhos da Macedónia...

Parados à minha porta, eu já com o sorriso da despedida, dispara ela:

- Sabe que também escrevo?

Pus cara de tolo, a que me vem em ocasiões assim, mas a vizinha não quis notar. E continuou. Que escreve desde a adolescência. Muito. Quase todos os dias. Prosa, poesia, teatro, histórias infantis... Nunca publicou nada. Não se atreve. Mas agora tinha terminado um romance, trabalho de anos, e se não me importasse, agradecia mesmo muito, não queria abusar mas gostava que, esperava uma opinião sincera, não é pressa...

Ainda não me tinha refeito do choque já ela voltava com o calhamaço, informando orgulhosa estarem ali, em Times New Roman ponto doze, seiscentas e quarenta e duas páginas, trezentas e quarenta e oito mil e seiscentas e seis palavras.

Agradeci a confiança. Ela sorriu, fez adeusinho.

Desde então, antes de sair de casa espreito a ver se há moura na costa. Ainda não houve. Aqui ao meu lado o monstro encara-me impaciente, perguntando-se quando é que resolvo devolvê-lo à dona e, como logo decidi, abanando a cabeça num ar grave, dizer-lhe que achei impressionante.


segunda-feira, novembro 29

Mr Bean em Vila Real


 

Ao acaso de uma conversa ou recordação, um aborrecimento, uma inesperada sacanice ou um comportamento que o traz à memória, e lá vem a cena de Novembro de 2008, que revejo como num écrã. 

 

Vila Real, ontem de manhã. Na espaçosa sala dos pequenos almoços do hotel Miracorgo estão à volta de cento e tal idosos. Uns enfileiram diante da máquina de café, outros assaltam o que há para comer, este e aquele hesita entre fruta e iogurte, lê-se nos olhos o medo do colesterol, da tensão, dos diabetes, do acv.

Observo sem malícia o comportamento do meu semelhante. Sorrio de uma vestida como quem vai em expedição aos Andes. Rio doutra com fatiota de toureiro. Um ancião empurra o vizinho que lhe quer tirar a vez diante do queijo. Alguém grita que não há xícaras. Uma octogenária pergunta se o motorista se chama Fonseca. Uma empregada, cercada de mãos enrugadas e gananciosas, defende a custo o tabuleiro com salsichas.

Entra Mister Bean, apertando nos braços o bebé Bean. Dois passos atrás, Mrs. Bean. Gorducha, óculos, fato de treino azul, mau modo. Ele, incrivelmente parecido com o actor, deve ter como ela uns trinta anos, veste uma espécie de camisola que deixa à mostra uma larga faixa de ventre gordo e peludo. As caretas que faz ao bebé não devem nada às de Rowan Atkinson: esbugalha os olhos, mexe as orelhas, estica a língua, produz grunhidos, franze o nariz, revira os lábios... Com ar ausente, silenciosa, Mrs. Bean ataca um prato cheio, bebe o café em goles demorados. Mr. Bean deposita o bebé na cadeira, levanta-se, tira dum saco uma câmara de vídeo. Filma a mesa, filma o bebé de frente, de lado, em close-up, filma o dorso de Mrs. Bean, filma a sala, os anciãos, as empregadas, a máquina de café, filma-me a mim, uma ou outra mesa vazia, as paredes, o tecto, e finalmente sai para o terraço a filmar o Corgo.

Volta. Senta-se cabisbaixo, parece esquecido do bebé que, inquieto, ele próprio começa a fazer caretas. Mrs. Bean bebe um último gole de café e pega na câmara. Filma a mesa, filma o bebé de frente, de lado, em close-up, filma a cabeça que Mr. Bean apoia agora nas mãos, filma a sala, os anciãos, as empregadas, a máquina de café, filma-me a mim, as paredes, o tecto, e sai para o terraço a filmar o Corgo.

Mr. Bean despertou e enfileira quatro pães. Corta-os em metades, barra-os de manteiga, entremeia-os de sucessivas fatias de queijo e fiambre, fiambre e queijo. Embrulha os pães em guardanapos de papel, amassa-os para diminuir o volume, fá-los desaparecer no saco.

Mrs. Bean regressa. Pega ela no saco e na cadeira, ele no bebé, e saem como estiveram o tempo todo: sem trocar palavra.

 

Quando lá em casa mostrarem o vídeo apareço eu como Mr. Bean, impassível, me filmou: saudando-o com o dedo médio espetado no ar.

 

domingo, novembro 28

No que dá guardar

 

Se pudesse faria ouvidos de mercador, porque estarem costantemente a dizer-lhe que é tara, além de aborrecido acaba por ter consequências desagradáveis, a começar pela dificuldade de descobrir alguém que aceite a sua obsessão, e partilhar a vida com um homem que tem um ataque de nervos quando, com rodeios, alguém sugere que viver assim é péssimo para a saúde e enorme o risco de incêndio.

O Gabriel ouve, sorri, às vezes resmunga a fingir que concorda, e muda de conversa, não lhes vai dar o gosto de saberem que o seguro há anos lhe retirou a apólice, e como nunca esteve doente tanto se lhe dá como se lhe deu.

Agradece o cuidado dos amigos, compreende que se preocupem, mas nem por sombras tem intenção de mudar de hábitos. Dá-lhes razão de que é excessivo, e pode ser psicose, mas que lhe há-de fazer, e para que mudar se é assim se sente feliz?

Compreende o pasmo dos que o visitam pela primeira vez e, aberta a porta, se lhes abre também a boca e caem os queixos. Estranho seria se se mostrassem indiferentes ao espectáculo, porque em cada divisão e recanto não são montões, mas torres de revistas, cada uma com o seu registo, empilhadas por tamanho, título e data. No começo também tinha coleccionado jornais, mas deixou, porque amarelavam e com os anos bastava pegar-lhes e desfaziam-se.

Alguns visitantes olhavam aquilo com ironia, outros fingindo pasmo, mas no pensamento a chamar-lhe tarado, perguntando-se como era possível descambar a tal ponto, alguém que no mais parecia em seu perfeito juízo.

Parecia sim, mas estava longe de sê-lo: aquela obsessão de coleccionar revistas, tê-las arrumadas por título, data e tamanho, servia-lhe para canalizar uma outra, a de em tudo exigir ordem e disciplina.

Já aqui referi que na escrita de policiais, quando o autor tem dificuldade com  o enredo, há uma regra que é assim a modos de bóia de salvação, a de que ao abrir uma porta o personagem depare com um cadáver.

Não é aqui o caso, pois há apenas a situação comezinha de quem, solteiro e com fortuna, nunca tinha trabalhado, nem tido em quem mandasse. Foi porque as  colecções o estavam a ocupar quase a tempo inteiro, pôs um anúncio para uma secretária que o assistisse, mas satisfizesse a cem por cento as suas exigências.

Em boa ou má hora o fez, tudo depende, e assim se viu o Gabriel assistido por uma Larysa, jovem farmacêutica de Kiev, super competente nos arrumos, o que muito lhe agrada. Capaz também em artes que ele, solteirão e órfão de mãe ainda bébé, só agora descobre.

 

sábado, novembro 27

Cafajeste


É todo sorrisos, jovialidade, a dez metros vem já com os braços no ar, pronto para o apertão de costelas e as palmadinhas reconfortantes. Apressado, sempre em urgências e aflições, a mãe outra vez no hospital, a filha que caiu do cavalo, o carro que agora enguiça sem mais e lhe custa rios de dinheiro.
- Tudo bem?
O interesse, os dentes a brilhar, o modo de papagaio cabeça torta a fingir que aguarda a resposta, tudo nele é falso, de mau plástico. Crava almoços, trafulha nas contas, casa que visite não se despede sem levar de empréstimo aquele livro que anda com tanta vontade de ler e ainda não teve ocasião de comprar. Adeus livro.
O não ser totalmente pulha aumenta o desagrado que provoca. De um sacana cem por cento protege-se a gente passando de largo, ou dizendo-lhe de caras para onde queremos que se mande. Mas este é viscoso, desliza sobre ele a ironia, não se lhe pega o insulto, aos pontapés  responde com mesuras.
Cavalheiro na aparência, pobre diabo no íntimo, cafajeste na realidade.

sexta-feira, novembro 26

O ascensor no r/c

 Hoje no Observador


 Ninguém se aborreça ou perca a boa disposição, isto sou eu na Travessa do Fala-Só, aqui ao lado de  casa, um dos poucos lugares onde posso falar abertamente, sem obrigação de cortesias ou receio de pisar os calos seja de quem for.

Estava para começar por um assunto que há muito me intriga, a inexplicável “pobreza” dos  multimilionários portugueses. Não se vá, porém, julgar que desdenho do montante da sua pecúnia, embora se fosse minha intenção fazer comparações com o que há de fortunas nos mais países da U.E., provavelmente também aí ficariam (ficaríamos?) na cauda.

Como me falta conhecimento das ciências que, possivelmente, explicam as causas de tal situação, escritor que sou poderia deixar-me tentar pela fantasia, e cobrir com esse clássico véu queirosiano o que, numa ou noutra altura, de despropositada ironia me ocorre. Como, por exemplo, perguntar-me se essa relativa modéstia não será reflexo de uma antiga e cautelosa mentalidade no negócio de secos e molhados, ou da dificuldade, que noutros tempos havia, para conseguir o alvará da venda ao balcão de vinho a copo.

Seja como for, indo por esse lado arriscava-me a parecer que caía no sarcasmo fácil do invejoso ressabiado, qualificativo que não mereço, pois entre o pouco que invejo não consta o dinheiro. O meu espanto causa-o a aparente facilidade com que neste tempo, em Portugal, algumas vezes como por obra e graça do Espírito Santo, qualquer badameco ascende ao escalão milionário.

Escrevi ascende e logo, mistérios do raciocínio, me saltou o pensamento dos que chegam à riqueza, para a multidão dos que por mais que se esforcem, esgadunhem, sofram, mintam, se humilhem, parecem condenados, uns à miséria, outros a um destino de fingimento e aparências, sentindo sempre em redor do pescoço a corda, que mesmo frouxa é ameaça pendente.

Há gerações sem conta que assim se mantém a vida no nosso Portugal, onde com tapete vermelho, vénia e rapapés, a uns tantos é apontado o ascensor-expresso, para que nele subam aos andares mais altos. Uma mão-cheia de sortudos ainda é capaz de chegar ao segundo ou terceiro, mas os restantes, quando passam na rua vêem o ascensor parado no rés-do-chão, às vezes com um papelucho onde se lê “Avariado”, nele uma seta a indicar as escadas.

Força nas pernas não adianta, por essas escadas sobe quem tem padrinho que o abençoe, ou compincha que lhe mostre as mãos que deve untar. Mesmo assim, depressa também não irá, e uma vez chegado ao destino vai descobrir que o ambiente confirma a verdade no ditado, de que não há paz quando escasseiam os ossos e são muitos os cães.

É triste, é trágico, dá pena, pois milionários ou remediados, pobres, mendigos, deixados por conta, para todos se deseja uma pátria de que se orgulhem, onde se sintam iguais, protegidos pela lei, onde não haja ascensores nem escadas para privilegiados, e cada um suba conforme as suas qualidades e cumprindo o seu destino.

Porque assim sinto e penso, agora com as eleições à porta mais me entristecem as parangonas nos media e a verborreia dos políticos, o cinismo das suas juras a demonstrar a pouca conta em que têm o cidadão, tomando-o por débil mental, repetindo promessas que, em falta de vergonha e desprezo por quem as ouve, não desmerecem das que garantem os bufarinheiros.

Fechadas as urnas, dos novos mandantes ouviremos a lengalenga de planos futuros, juramentos solenes, certezas para um amanhã soalheiro sempre adiado. Mixórdia que alguma virtude deve ter, quanto mais não seja que a da banha de cobra, pois a vendem há meio século e continua a haver quem lhe reconheça virtudes.

No futuro próximo nada mudará. E desculpem a triste franqueza, mas das “gerações mais bem preparadas de sempre” também não espero avanços, quanto mais não seja senão porque lhes falta muito do que nos países verdadeiramente desenvolvidos é considerado o currículo mínimo indispensável. Além de que nesses países o ascensor funciona de modo igual para ricos, pobres, remediados, e subir nele não depende da família ou da cunha, somente do talento e da qualidade.

Digo-o com pena, mas sabemo-lo todos, vai demorar a que chegue a geração realmente preparada para consolidar um país moderno, desenvolvido, exigente na qualidade de vida e do ensino, com garra bastante para pôr fim ao desleixo e à corrupção. Que não aceite uma Justiça que não é somente de casta, mas tem um funcionamente que envergonha e assusta.

De modo que os filhos dos bebés que hoje nascerem irão encontrar muito do mesmo, mas talvez os filhos desses cresçam de olhos abertos e recusem a bandalheira. Que não caiam em sonhos, não aceitem o deixa-andar, a esperteza, a pouca-vergonha, não esperem favores nem milagres de Fátima, metam mãos à obra de mangas arregaçadas, exijam que Portugal deixe de ser a quintarola de alguns senhores, e suba à categoria de nação próspera, democrática e civilizada.

 

quinta-feira, novembro 25

Para começar o dia

 

Três momentos da minha manhã: reli isto, li o Blasfémias aqui e fui ver  estes videos.