domingo, outubro 31

Salazar e da Vinci

 

                                 Eduardo Malta pintou Salazar em 1933 (v. Museu do Caramulo).
Uma tarde do Verão de 1934, num café em Madrid, Joaquim Novais Teixeira (1898-1972), meu amigo e mentor, viu o retrato num jornal e mostrou-o a Valle-Inclán (1866-1936) seu companheiro de tertúlia. O  escritor galego olhou, sorriu, e foi lacónico no comentário: "El Mono Liso".
 

Pelo eterno descanso

 

Depende do carácter, sensibilidade, natureza do próprio, e assim para uns os sonhos são apenas isso, outros vêem neles pesadelos e previsões que raramente anunciam algo de bom.

Conta o Veiga que desde há tempos quase todas as semanas se lhe repete um sonho que, como tantas vezes acontece, diria ser sem pés nem cabeça, não fosse a bizarria de incluir uma cena real e penosa demais, a da noite em que tinham convidado a sogra para jantar, e a Deolinda já então muito doente, enfraquecida pelo tratamento, se pegou com a mãe por causa de uma niquice.

Tinham desatado aos berros e aos insultos, deitando-se culpas, a certo ponto julgou que seria melhor pôr fim àquilo antes que acabasse mal. Foi então quando a Deolinda, desvairada, se levantou e, parecendo nem dar conta do vinho derramado, pegou na garrafa pelo gargalo num gesto de ameaça contra a mãe.

Diz ele que a sua reacção foi instantânea, nada o poderia travar, nem durante um segundo lhe ocorreu a gravidade da doença da mulher, o empurrão foi tão violento que a atirou para o soalho. Queria ajudá-la a erguer-se, mas ela estrebuchava, finalmente lá conseguiu levantar-se e virou-lhes as costas.

Entretanto ambas faleceram, a Deolinda faz quatro anos este mês, a sogra em Maio passado. No sonho que tanto o aflige aparecem ambas ainda em vida, fingindo uma relação que de verdade nunca tinham tido, até que se repete o momento em que Deolinda, num berreiro de doida, os olhos a chamejar, pega na garrafa e avança, agora não para a mãe, sim direita a ele, que em pânico dá um grito mas não consegue evitar a pancada.

A emoção é de tal modo poderosa que o acorda dum salto e a tremelicar, banhado em suor, inquieto por não compreender qual será o que causa a mudança dos detalhes. A menos que...

Nunca foi de bruxarias ou religiões, e pode bem ser que para tudo haja explicação, como é legítimo aceitar ser infindo o que ignoramos. Também não quer saber o que penso, apenas que o oiça:

- Isto sou eu a supor. A minha relação com a Tânia começou uns três meses depois da Deolinda ter adoecido. Fui cauteloso, consegui que nunca desconfiasse, na cama continuou tudo como de costume, sem altos nem baixos. Mas imagina que há outros mundos, formas de vida que nem conseguimos imaginar, e lá onde está a Deolinda... É que só assim consigo explicar estes pesadelos. Também não tencionava confessar-to, mas és amigo... Falei ao padre Vítor e ficou combinado, no dia dois de cada mês rezará uma missa pelo eterno descanso da alma dela.

 

 

 

sábado, outubro 30

Poesia

 

Soubesse eu de poesia. Num quarteto, soneto ou ode, pronto soprava para longe o nevoeiro que cega e entontece. Soubesse eu, mas não sei.
Cavo na prosa, que não é de brisas, antes de pesos, arrastos, algemas e grilhetas. Desconhece a inspiração. Nada lhe vem do alto ou do sublime, é obra de enxada em terra dura, com morosidades de boi antigo nas voltas da nora.
Obriga-me a escrever beijo, quando por vontade escolheria ósculo. Falo de lusco-fusco, envergonhado de dizer arrebol. Mas poeta não é qualquer, nem quem quer, só aquele que as Graças favorecem.

Essa gente

"Não precisávamos do debate do OE para descobrir a desmesurada ausência de escrúpulos do dr. Costa e dos seus acólitos. E se é compreensível celebrar durante cinco minutos a queda dessa gente, seria tonto ignorar que a queda é simulada, e que essa gente, dona de um apetite voraz, nunca abdicará do poder com civilidade. O passo atrás visa dar muitos passos à frente, cada um a esmagar-nos no caminho. Essa gente é boçal, falsa, inapta, prepotente, ignorante e desonesta? Sim, sim, sim, sim, sim. E sim. Infelizmente, sobra-lhes em ganância o que lhes falta no resto." Aqui

 

sexta-feira, outubro 29

Bingo

 

Mesmo sabendo que me engano, continuo a acreditar que só as histórias do passado possuem os ingredientes necessários ao sonho. As do presente parecem quase sempre carecer de elementos essenciais. E sem nostalgia, nem a espessa névoa que separa a vivência das gerações, elas têm aos meus olhos a secura desapaixonada que caracteriza os relatos dos jornais. Pode o seu enredo ser interessante, mas como que lhes falta a «alma». Por isso, para sonhar, recordo de vez em quando as histórias de antigamente, e é como se pudesse viajar no tempo.

Grande, de granito, com duas varandas de sacada, a casa do padre Francisco ocupava um lado inteiro do largo. Na freguesia de quase mil almas a igreja dava uma côngrua abastada, fora bons emolumentos em missas, festas, baptizados e enterros. Como o senhor abade, como lhe chamavam por deferência, além de ser rico de nascença estava ali há mais de cinquenta anos, dizia-se à boca-pequena que no cofre da sala, escondido por um cortinado, e tão grande que cabia lá uma pessoa em pé, tinha amontoado uma das maiores fortunas da província.

Pela criada e pela alcovitice das velhas, o padre conhecia os boatos. Incomodava-o também o saber que na taberna se especulava muitas vezes sobre as suas posses e que havia quem, toldado pelo vinho, quisesse apostar que um dia iria saber ao certo quanto ouro e quantas notas de conto ele tinha enterrado na parede.

 O padre Francisco não gostava daquilo. A sua fortuna era grande – «tinha para comer», dizia ele aos sobrinhos – mas amealhador e avarento por natureza, nunca lhe pareceria suficiente.

Com o correr do tempo, a ideia de que alguém se viesse a apoderar da chave que ele próprio cosera no forro da batina, e abrisse o cofre para o roubar, transtornara-lhe por inteiro a cabeça. Assim havia anos que à noite, sem que ninguém o suspeitasse, se despedia da criada como se se fosse deitar, trancava-se por dentro na sala e despendurando a caçadeira sentava-se no cadeirão à espera dos ladrões. Provavelmente os irmãos Gato, trolhas de ofício, mas mais gatunos que outra coisa. Por volta das cinco da manhã começava-se a ouvir o restolho da gente que saía para os campos e só então, considerando o perigo passado, se metia na cama.  Às sete estava diante do altar para a primeira missa.

Já quase nos noventa, no dia da festa de uma freguesia vizinha, ao fim do jantar, com a serenidade de quem adormece, entregou a alma ao Criador. Os sobrinhos abriram o cofre e entreolharam-se preocupados, porque o recheio, umas dezenas de contos, um saquinho com pequenas moedas de ouro e três cordões, não era exactamente o que esperavam, nem o que o tio lhes tinha dado a entender.

O povo, invejoso e descontente, julgando que os herdeiros tinham encontrado o eldorado, resmungou que bem mereciam uma carga de pau, pois ao menos poderiam fazer algumas benfeitorias à aldeia.

Com o passar dos anos tudo esqueceu e o casarão do padre Francisco, desabitado, foi ruindo. A garotada quebrou-lhe as vidraças à pedrada, a chuva apodreceu-lhe as traves, o telhado desmoronou, os ciganos tinham-lhe cortado as portas à machada para lenha. Quando os irmãos Gato, agora empreiteiros, ofereceram comprá-la, avisaram logo os sobrinhos que não pedissem muito. Na sua opinião ia custar tanto o deitar as paredes abaixo, tirar o lixo e limpar o assento, que tudo o que pagassem era dinheiro mal empregue. Mas por fim lá se devem ter posto de acordo, porque um dia os Gato trouxeram o Caterpillar e começaram a demolir o prédio.

O resto soube-se por indiscrições, mas ninguém o pôde comprovar, e quando os sobrinhos quiseram levar os empreiteiros para tribunal, o advogado disse-lhes que seria perder tempo e dinheiro.

-Com medo que o roubassem o padre tinha escavado um buraco na parede e aí escondera a fortuna numa arca de ferro que o tractor pôs a descoberto logo à primeira pancada. Houve quem ouvisse o motorista gritar «Bingo!», mas contava-se que os patrões o chamaram de lado e ele depois, no posto da Guarda, jurou que nunca tinha gritado semelhante coisa, não sabia o que era, não tinha visto arca nenhuma.

quinta-feira, outubro 28

Criar mundos

Há diários importantes, e os que são apenas interessantes. Há-os íntimos, alguns dolorosamente francos, outros mascarados. Os que são escritos para ferir, e os que são escritos para recordar.
O meu, suponho, cabe mal nas categorias acima, pois menos que uma anotação de factos e pensamentos, o vejo, sobretudo, como um anseio de conversa.
A conversa que me imagino a ter com alguém de carne e osso, numa dessas amizades com empatias sincrónicas e harmonias duradouras. Amizades ideais que de certeza alguns ressentem e mantêm a vida inteira, mas que a mim não couberam. E nesta altura é improvável que me venham a caber, pois a idade - pelo menos no meu caso - à medida que aumenta a impaciência e o sentido crítico, vai reduzindo a capacidade de desculpar.
Que isto é meio caminho andado para a solidão, sei-o há muito. Mas tanto quanto dela tenho experiência, também aprendi que os males da solidão são relativos, pois com livros e fantasia é que se criam mundos à medida do nosso sonho. O que não impede que o sonho seja faca de dois gumes: nas satisfações que dá pesa sempre a impossibilidade e, ao acordarmos dele, a ânsia do que se não possui ou se não alcançou dói ainda mais fundo.