terça-feira, abril 30

Bilhetes (13)


Aborrecem-se os jovens com o resmungar dos anciãos, e motivo têm de sobra, pois para a sua compreensível pressa de viver pouco há de mais enfadonho do que suportar a lengalenga do antigamente, aquele remoer das coisas boas do passado, a simplicidade das pessoas, a pureza do ar, o sabor da comida, de como os vizinhos davam ajuda e o respeito que havia, as boas maneiras, a beleza das praias, o orgulho de ser português.
No que me cabe, e a chegar ao fim da linha, mas com boa memória de como nos meus tempos de rapaz os velhos me pareciam em extremo aborrecidos, não deve haver quem com verdade se possa queixar de que eu o tenha moído com recordações de um fictício paraíso, ou assustado exagerando os medos e as carências doutros tempos.
Todavia, por vários motivos e evitando fazer juízos de valor, há circunstâncias em que me vejo a comparar o presente e o passado, não para aborrecer os que começam na vida ou vão a meio caminho, antes para me maravilhar com algumas mudanças e porque me sinto desnorteado com aquelas que ultrapassam o meu entendimento.
Nos anos que levo foi colossal o que mudou, incrível a velocidade a que aconteceu: já era adulto quando o plástico, os detergentes, os motores a jacto, a televisão, o computador e tantas outras maravilhas entraram nas nossas vidas. Contudo, a par do extraordinário, vivi alterações que aos olhos dos agora jovens parecerão tontas ou comezinhas, mas nalguns casos me obrigaram a ajustamentos, umas vezes ridículos, noutras estranhos, quase  sempre perturbantes.
Só que tu, caro jovem, mesmo com boa vontade e paciência não estás aparelhado para que tas confesse, e por isso as calo.

segunda-feira, abril 29

Bilhetes (12)


Não foi sonho, nem fantasia, aconteceu de verdade. Sabem-no ambos, mas desde então ambos o calam, forçosamente são diferentes as recordações de cada um e de como viveram o momento. Se bem que, na memória que ele guarda, momento não é a palavra exacta nem adequada, continua incapaz de recordar se foi uma hora, duas, talvez até menos, ou mais, pode ter sido um fim de tarde ou ao começo da noite. Uma certeza mantém, a de que em circunstâncias assim o tempo ganha outra dimensão, do mesmo modo que a memória, embora julgue ter guardado tudo, por vezes chama instantes e detalhes que nessa altura lhe pareceram diminutos, mas vistos a outra luz ganham realce, pesam mais, distorcem, mostram outra realidade.
Então, nas horas sombrias, pergunta-se ele se o que recebeu foi uma generosa, miraculosa, excepcional dádiva, ou deve traduzir o corte brusco, o desaparecimento total dela, como um sinal da mudança dos tempos e dum mundo que já nem sempre compreende, porque desnorteia a sua sensibilidade e toma valores que negam os seus.

sábado, abril 27

Há vidas sem passado


Cerra os olhos, a sua voz é um murmúrio: “Minha Mãe nasceu numa dessas aldeias da Peneda de que não faz sentido dizer que nelas o tempo tinha parado, porque o único tempo que lá se conhecia não era o dos séculos que ao passar trazem progresso, mas o dos dias e das estações, monótono, desesperante, uma maldição. Não se vivia ali à espera de um futuro melhor, mas num dia-a-dia de desespero e míngua.
Em casa eram sete, o rebanho dava à justa para que não morressem de fome, e como cada boca a menos era um alívio, chegada aos dez a rapariga foi posta a servir. Dos rapazes, dois recolheu-os o Senhor quando ainda gatinhavam, a outros dois valeu-lhes o acaso de ajudarem à missa um missionário galego, que vendo-os atilados, expeditos no ritual, deu-se  conta da potência e levou-os para o seminário da Falperra.
Dependesse de minha Mãe, a história do mundo seria uma incógnita. Estou para encontrar alguém que se lhe possa comparar na capacidade de fintar perguntas, encolher os ombros, ou com um gesto de desprezo reduzir a curiosidade alheia, a minha em particular, a uma forma de inconveniência. O pouco que sei das suas circunstâncias descobri-o à custa de rezingar e daquela teimosia de que as crianças têm o segredo, só por respeito não me aproprio do dito que uma vez lhe ouvi a propósito de uma vizinha, que dava ideia de que para se saber dela alguma coisa "tinha de se lha tirar do cu com um gancho".
Serviu e amargurou, de certeza muito, pois sensibilidade tinha de sobra, mas a salvação deve ter-lhe vindo do carácter e da ideia de que ninguém seria capaz de lhe "pôr o pé no cachaço", expressão que debitava como se tivesse defronte um inimigo.
De longe a longe, temendo os seus repentes, pois não se ensaiava para me desancar, eu punha entre nós a distância precisa e voltava à carga:
- Então pra onde é que foi servir a primeira vez? Quando era miúda.
Há olhares que fuzilam, outros como o dela levam a acreditar que no fundo resta em nós algo de selvagem, da fúria do bicho a que um dia pertenceu um ou outro dos nossos cromossomas. Os olhos de minha Mãe ganhavam então a fixidez dos da pantera pronta ao ataque, dava ideia de que tudo nela era tensão e o seu propósito apenas um: estraçalhar.
Eu andaria pelos catorze, mas já tarimbara de pancadas e bofetões, de modo que não somente os meus temores iam diminuindo, mas começara a distinguir os sinais e a usar alguma estratégia.
Uma tarde, vendo-a calma, arrisquei-me a repetir: - Pra onde é que foi servir? Diga lá.”