terça-feira, fevereiro 12

O sorriso e a pistola



O sorriso e a pistola

Deus Nosso Senhor esconde as razões de nos ter criado como somos, mas nada nos impede de fantasiar, e então, naquelas horas em que tudo parece sair ao contrário do que desejamos, esquecemos a nossa pequenez e pomo-nos a criar o mundo, tal como ele deveria ser se o Todo-Poderoso tivesse feito bem as coisas.
Por si só, semelhante ambição dá medida do pouco ou nada que valemos, mas também ajuda a esquecer como é diminuta a bola em que Ele nos pôs, onde vamos tratando da vidinha o melhor que se pode, fazendo o possível para esquecermos a brevidade da nossa passagem. Brevidade aliás muito relativa, pois ocasiões há em que tudo se arrasta de maneira que as horas parecem séculos.
Ocorre-me isto, porque desde há tempos tenho ideia que é um não parar de babosices acerca do sossego e da harmonia da vida no campo, de como ao romper do dia o chilreio da passarada descansa a alma, a serenidade que vem do  sol a nascer.
Talvez assim seja na imaginação de quem num quinto andar tem por paisagem o gaveto fronteiro, da natureza não conhece mais que os jardins, e do astro-rei só dá conta quando ele já vai alto.
O caso é que eu e tantos outros, a viver em solidão, apertados entre montes,  aguentamos mal o desfiar sobre as coisas pastoris e boas da vida da aldeia. Ele é o solzinho, o ar puro, o ti Adélio que aos noventa ainda cava a horta, a Rosa que faz alheiras à moda antiga, o forno onde a Laura e a irmã cozem pães de centeio, grandes como rodas de carro.
Babam-se as revistas com a "autenticidade" deste viver, pergunta a televisão a idosos surdos se lhes agradaria a vida fora daqui; aparecem uns mirones citadinos a fotografar isto, aquilo, acham "mesmo típicos" os casebres arruinados, a fonte velha, as pedras do lagar, aquele castanheiro.
A aldeia? Ó senhores, deixem-se de tretas, não nos venham acordar do sono a que nos obrigamos para nos podermos aguentar uns aos outros. Dando-nos os bons-dias, conversando à esquina sobre o tempo, a amêndoa e a carestia, enquanto esperamos a carrinha do padeiro. Sorrindo e batendo nas costas do filho da p. que à noite empurra o contentor do lixo para a nossa parede. Sorrindo ao filho da p. que com ácido queimou as raízes do limoeiro do vizinho porque lhe ensombrava o quintal. Sorrindo ao filho da p. que desvia a água da rega. Sorrindo. Sorrindo. Sorrindo e falando mansinho à grandessíssima que manda o filho mijar à nossa porta, porque a incomoda o ladrar do cão.
Sorrindo e sabendo uns dos outros que não há casa sem pistola.