O sorriso e a
pistola
Deus Nosso Senhor esconde as razões de nos ter criado como somos, mas nada
nos impede de fantasiar, e então, naquelas horas em que tudo parece sair ao
contrário do que desejamos, esquecemos a nossa pequenez e pomo-nos a criar o
mundo, tal como ele deveria ser se o Todo-Poderoso tivesse feito bem as coisas.
Por si só, semelhante ambição dá medida do pouco ou nada que valemos, mas
também ajuda a esquecer como é diminuta a bola em que Ele nos pôs, onde vamos
tratando da vidinha o melhor que se pode, fazendo o possível para esquecermos a
brevidade da nossa passagem. Brevidade aliás muito relativa, pois ocasiões há
em que tudo se arrasta de maneira que as horas parecem séculos.
Ocorre-me isto, porque desde há tempos tenho ideia que é um não parar de
babosices acerca do sossego e da harmonia da vida no campo, de como ao romper
do dia o chilreio da passarada descansa a alma, a serenidade que vem do sol a nascer.
Talvez assim seja na imaginação de quem num quinto andar tem por paisagem o
gaveto fronteiro, da natureza não conhece mais que os jardins, e do astro-rei só
dá conta quando ele já vai alto.
O caso é que eu e tantos outros, a viver em solidão, apertados entre montes,
aguentamos mal o desfiar
sobre as coisas pastoris e boas da vida da aldeia. Ele é o solzinho, o ar puro,
o ti Adélio que aos noventa ainda cava a horta, a Rosa que faz alheiras à moda
antiga, o forno onde a Laura e a irmã cozem pães de centeio, grandes como rodas
de carro.
Babam-se as
revistas com a "autenticidade" deste viver, pergunta a televisão a idosos
surdos se lhes agradaria a vida fora daqui; aparecem uns mirones citadinos a
fotografar isto, aquilo, acham "mesmo típicos" os casebres
arruinados, a fonte velha, as pedras do lagar, aquele castanheiro.
A aldeia? Ó
senhores, deixem-se de tretas, não nos venham acordar do sono a que nos
obrigamos para nos podermos aguentar uns aos outros. Dando-nos os bons-dias,
conversando à esquina sobre o tempo, a amêndoa e a carestia, enquanto esperamos
a carrinha do padeiro. Sorrindo e batendo nas costas do filho da p. que à noite
empurra o contentor do lixo para a nossa parede. Sorrindo ao filho da p. que
com ácido queimou as raízes do limoeiro do vizinho porque lhe ensombrava o
quintal. Sorrindo ao filho da p. que desvia a água da rega. Sorrindo. Sorrindo.
Sorrindo e falando mansinho à grandessíssima que manda o filho mijar à nossa
porta, porque a incomoda o ladrar do cão.
Sorrindo e
sabendo uns dos outros que não há casa sem pistola.