segunda-feira, maio 30

Perdas

“The view after seventy is breathtaking. What is lacking is someone, anyone, of the older generation to whom you can turn when you want satisfy your curiosity about some detail of the landscape of the past. There is no longer any older generation. You have become it, while your mind was mostly on other matters.”

William Keepers Maxwell Jr. (1908-2000)

PS. Que terá ele pensado quando chegou aos 92?

domingo, maio 29

Uma ponta de juízo

 

Quem tem uma ponta de juízo não se mete em zaragatas, evita desafios, passa de largo, foge de contendas como o diabo da cruz, que assim poupa dinheiro, tem paz e sossego.

Essa ponta já ao Matias faltava quando era novo, mas tinha então uma corpulência de Golias, musculatura idem, para resolver conflitos bastava-lhe ameaçar. Sobre os que acabavam a murro e pontapé havia um historial de dentes partidos, caras amarfanhadas, braços desengonçados, o olho cego do “Bem te digo” prova de que nalgumas ocasiões desvairava.

Com a idade tem vindo a encolher, do corpo gigante resta menos de metade, essa só pele e osso, como se a natureza, arrependida do excesso que tinha criado, exagere agora no avesso. E juízo continua sem ponta dele, mas se perdeu a força dos bíceps ganhou a do dinheiro, pois como nos contos de fadas, a herança de um parente na Venezuela fê-lo saltar da necessidade para a abastança. Desde esse abençoado momento, ai dos que se põem de través, pois lhe importa menos ganhar ou perder, do que o gozo de afligir, obrigá-los a gastar rios de dinheiro, vê-los em tremuras quando a sua advogada, a doutora Cláudia, os põe entre a espada e a parede.

Manhosa e de maus fígados, consta dessa que bate no marido e o enfeita com galhos quando daí lhe vem proveito. Contudo, o que a sabida nem por sombras esperaria, era encontrar no Matias fôrma para o seu pé, pois embora lhe conhecesse a reputação antiga, julgava que do lingrinhas que ele agora era nada havia a temer.

O cálculo saiu-lhe errado. Ficou sem ar quando ele, fingindo não ver a factura que lhe estendia, disse que como já o tinha sangrado demais, esta não pagava. E de futuro só metade. Ou nada.

O sorriso de descrença ainda lhe franziu os lábios, mas parou com a entrada do Chico “Porrete”, sobrinho, versão do Matias jovem e zero de entendimento.

 

sábado, maio 28

O sorriso e o sexo

Vamos lá então meter o nariz onde por pressuposto não sou chamado, e que a sisuda maioria provavelmente acha impróprio para a minha idade. Por sorte é essa uma questão do foro privado, e aqui só se tocará em generalidades, dois fenómenos apenas, mas que singularmente concorrem para a poluição mental dos meus dias: o sorriso e o sexo.

Tornou-se-me um reflexo automático: se na televisão começam aquelas bonecas loiras e arranjadinhas a sorrir para o boião de creme, o desinfectante da sanita, o caldo Knorr? Desligo. Político ou comentador a arreganhar os dentes? Desligo. Evento, concurso, a multidão aos vivas e a sorrir? Desligo. Entrevista às gargalhadas? Idem.

Com o sexo a dança é a mesma, maior ainda a ubiquidade. Explicações, estatísticas, cursos, workshops, sonhos, recalques, fetichismos,  sadomasoquismos, sombras de Grey, pederastias, incestos, bestialidades, trios, quartetos, swings, orgias…

Com filmes, televisão e internet, a oferta excede de tão longe a procura que nem se pode dizer, como nas lojas de antigamente, que é à vontade do freguês. Mulher ou homem, mesmo superdotado nos atributos, com tempo de sobra e resistência de mulo, passaria o século sem  esgotar as possibilidades do que lhe oferecem.

De modo que, caído o sorriso e o sexo em extrema banalização, resta a pergunta se compensa sorrir e copular. Responda cada um por si, mas acerca da cópula talvez valha a pena dizer que, embora nem todos se dêem conta, é dos inesquecíveis momentos em que um casal verdadeiramente pode comungar.

O sorriso pouco importa, banalizar o sexo deveria ser crime.

 

PS. Isto foi escrito oito anos atrás, mas ao lê-lo agora parece-me do começo do século passado.

 

quinta-feira, maio 26

Descendências

 

Desmiolado, indiferente às conveniências, dinheiro no bolso, o emigrante tem o mau hábito de no mês de Agosto visitar as berças, e com os seus barulhentos costumes, música pimba, dialecto franciú, ir  perturbar o sossego da boa gente que alegremente dispensaria o confronto anual com aquela desagradável versão de si própria.

O português tem isso: se julga pertencer à classe média baixa, média média, média alta, superior ou olímpica, é logo atacado de amnésia e nojo, os outros tornam-se-lhe gentinha, "pobrezinhos" , passa a sofrer da mais miserável forma de racismo e discriminação: a que se volta contra aqueles a que pertence.

Vou lendo aqui e ali queixumes e desdéns, sugestões de que o emigrante vá passar férias a outro lado, não perturbe a serenidade, não venha com o seu barulho e jactância recordar a simpleza e condição humilde de que todos descendemos, mesmo os que se julgam nobres e melhores. Que o não são. Julgam-se.