terça-feira, fevereiro 12

A ameaça do beijo



A ameaça do beijo

A intenção tenho-a há muito, mas umas vezes por desleixo, outras pelo mau hábito de adiar, ou inventando urgências, ainda não encontrei solução que me satisfaça. Incluo-a nas decisões inadiáveis a tomar no começo do ano, mas passado esse momento solene vai lentamente deixando de ser prioridade, entra na categoria das coisas que ficam para amanhã, o calendário muda, e por fim engano-me a mim próprio, dizendo que é alucinante a pressa das horas.
Dá-se o caso que desde há tempos ando a mentalizar-me para ver se consigo adoptar outra atitude em relação ao beijo. Ao beijo social.
Nasci numa família que não era de beijoquices, também poucos beijos dei às namoradas da minha adolescência, porque em maioria eram elas das que ao primeiro sinal de cio ou de paixão cruzavam os braços sobre o peito e, com o ar espantado de quem se vê em perigo, recuavam num modo de abrenúncio.
No começo da minha estadia em Paris, não somente passei da escassez ao excesso, como por vezes tive de engolir em seco, pois indo de visita esperava-se  que trocasse os sapatos por umas pantufas que poupavam o soalho, e depois de beijar os presentes estendesse essa prova de carinho aos cães e gatos da família.
Quando cheguei à Holanda, país de frio no clima e nos costumes, nada de beijos e abraços, agradou-me o bom uso, infelizmente abandonado, de fazer uma pequena vénia a acompanhar o aperto de mão..
Desde há muito, porém, com os exemplos da TV hoje em dia todos esperam   pelo menos três beijos, num cansativo e em muitos casos pouco higiénico  intercâmbio de chilreios e aplicações de saliva. Na medida do possível vou evitando, fico-me pelo encosto da face e dou um passo atrás.
Como antes disse, ando a mentalizar-me para fazer frente à situação que me espera quando daqui a nada voltar à aldeia. É que pela força das telenovelas, o desejo de imitar ou falta de carinho, certo é que ao acaso de um encontro, aos domingos à saída da missa, junto da carrinha do queijo, da do peixe, ou num preparo de conversa, o que ainda lá há de mulheres, quase sem excepção idosas e em maioria viúvas, suga o rosto do viajante com um frenesim que, se não fosse em público, passaria por duvidoso.
Negar-me, não vejo como, pois ia ser malvisto recusar a prova de simpatia ou dar uma impressão de arrogância. Depois ainda pensei desculpar-me com os perigos da gripe, mas desisti, porque algumas delas, de maus fígados, seriam bem capazes de redobrar os beijos, na esperança de apressarem a hora da minha última viagem.