A ameaça do beijo
A intenção tenho-a há muito, mas
umas vezes por desleixo, outras pelo mau hábito de adiar, ou inventando
urgências, ainda não encontrei solução que me satisfaça. Incluo-a nas decisões
inadiáveis a tomar no começo do ano, mas passado esse momento solene vai
lentamente deixando de ser prioridade, entra na categoria das coisas que ficam
para amanhã, o calendário muda, e por fim engano-me a mim próprio, dizendo que
é alucinante a pressa das horas.
Dá-se o caso que desde há tempos
ando a mentalizar-me para ver se consigo adoptar outra atitude em relação ao
beijo. Ao beijo social.
Nasci numa família que não era
de beijoquices, também poucos beijos dei às namoradas da minha adolescência,
porque em maioria eram elas das que ao primeiro sinal de cio ou de paixão cruzavam
os braços sobre o peito e, com o ar espantado de quem se vê em perigo, recuavam
num modo de abrenúncio.
No começo da minha estadia em
Paris, não somente passei da escassez ao excesso, como por vezes tive de engolir
em seco, pois indo de visita esperava-se que trocasse os sapatos por umas pantufas que
poupavam o soalho, e depois de beijar os presentes estendesse essa prova de
carinho aos cães e gatos da família.
Quando cheguei à Holanda, país
de frio no clima e nos costumes, nada de beijos e abraços, agradou-me o bom
uso, infelizmente abandonado, de fazer uma pequena vénia a acompanhar o aperto
de mão..
Desde há muito, porém, com os
exemplos da TV hoje em dia todos esperam
pelo menos três beijos, num
cansativo e em muitos casos pouco higiénico intercâmbio de chilreios e aplicações de
saliva. Na medida do possível vou evitando, fico-me pelo encosto da face e dou
um passo atrás.
Como antes disse, ando a
mentalizar-me para fazer frente à situação que me espera quando daqui a nada
voltar à aldeia. É que pela força das telenovelas, o desejo de imitar ou falta
de carinho, certo é que ao acaso de um encontro, aos domingos à saída da missa,
junto da carrinha do queijo, da do peixe, ou num preparo de conversa, o que ainda
lá há de mulheres, quase sem excepção idosas e em maioria viúvas, suga o rosto
do viajante com um frenesim que, se não fosse em público, passaria por
duvidoso.
Negar-me, não vejo como, pois ia
ser malvisto recusar a prova de simpatia ou dar uma impressão de arrogância. Depois
ainda pensei desculpar-me com os perigos da gripe, mas desisti, porque algumas
delas, de maus fígados, seriam bem capazes de redobrar os beijos, na esperança
de apressarem a hora da minha última viagem.